Enquanto quem podia se esbaldava e desafiava os próprios limites para esquecer os problemas e se divertir nas ruas e bailes de norte a sul do País, dezenas de milhares de brasileiros só queriam sobreviver ao carnaval. Literalmente.

No fim de semana de folia, o litoral norte de São Paulo, especialmente o município de São Sebastião, contava suas dezenas de mortos e centenas de desabrigados, depois de ser atingido por uma das maiores tempestades já registradas: a quantidade de água – mais de 600 milímetros – que desabou na região em menos de 24 horas foi maior do que a das chuvas do verão passado inteiro.

Como em qualquer tragédia de maior magnitude que envolva fenômenos naturais, os primeiros números costumam ser bastante distantes do real. Do domingo, 19, para segunda-feira, o número de vítimas que pagaram com a vida subiu de 17 para 36; até a manhã de sexta-feira, 24, já chegavam a 54 – mais do que o triplo inicialmente divulgado. Os que perderam suas casas passavam de 4 mil.

Em dezembro de 2021, enquanto desastre semelhante ocorria na Bahia, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) curtia folga no mar de Santa Catarina. Questionado sobre providências para o caso depois de um de seus giros com o jet ski da Marinha Brasileira, ele deu de ombros. Insistiram e, então, disse que esperava “não ter de retornar [ao trabalho] antes” do previsto.

Agora, sentado na ex-cadeira dele está Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que fez o que qualquer chefe de Estado ciente e cumpridor de suas atribuições faria, mesmo em período de descanso: deixou seu conforto no litoral baiano e foi verificar a dimensão do estrago “in loco”. Em tempo: no fatídico 8 de janeiro da tentativa de golpe com a invasão e depredação dos prédios dos três Poderes, com apenas uma semana no cargo, o presidente estava em tarefa semelhante, visitando Araraquara (SP), atingida por uma tempestade.

Não é coincidência que as duas missões “extras” que Lula fez neste início de governo tenham sido por causa de eventos climáticos extremos. É o que teremos e que se avizinha, em formas cada vez mais severas, pelas próximas décadas, conforme afirmam todos os especialistas. Um cenário tão tenebroso quanto injusto, já que os maiores responsáveis por ele – quem produz mais emissão de gases, ou seja, os países mais industrializados – não serão os mais castigados.

Na lista de quem corre mais perigo, estão nações insulares, como Maldivas, Kiribati e Tuvalu, arquipélagos que podem até desaparecer do mapa por conta do aumento do nível do mar; nações africanas e asiáticas com pouco acesso a água potável e sem estrutura de segurança alimentar e proteção contra desastres; e nações costeiras, como Bangladesh, Vietnã e Filipinas, onde ocorrem tempestades tropicais intensas e com frequência.

Um país-continente como o Brasil não tem como escapar sem grandes danos. Os prejuízos econômicos, como a forma com que serão afetadas a agricultura e a pecuária por causa das mudanças climáticas, ainda são pouco conhecidos e muito negligenciados. Menos mal que, nesse sentido, não haja mais uma governança negacionista, mas o desafio que se impõe para o setor é gigantesco.

Mas descuido e negligência, por aqui, se dão mesmo é quando se discutem medidas de prevenção a ocorrências trágicas no período das chuvas. Ano após ano, deslizamentos fazem vítimas em áreas – refrescando a memória, no ano passado, nesta mesma época, os lamentos eram por Petrópolis, na região serrana do Rio.

Deslizamentos e inundações são ocorrências que precisam envolver as três esferas do Executivo

Dados do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) revelam que na última década, entre 2011 e 2020, ocorreram mais de 6,5 mil desastres naturais no Brasil, os quais mataram mais de 13 mil pessoas. Foram afetados diretamente, de alguma forma, mais de 28 milhões de brasileiros – ou 13% da população.

Já no ano passado, em números da Confederação Nacional de Municípios (CNM), pelo menos 457 pessoas perderam a vida por causa do volume de águas. Deslizamentos e inundações são ocorrências que precisam envolver as três esferas do Executivo, com a União fornecendo recursos suficientes, os Estados fazendo a devida distribuição e implementando uma rotina logística e cada município adaptando seu planejamento urbano – os maiores por meio de planos diretores – para que tragédias se tornem apenas transtornos.

Esse seria o ideal a ser buscado. Entretanto, a coisa já começa errada em Brasília: no orçamento que enviou ao Congresso em 2022 para este ano, o ex-presidente havia cortado quase toda a já pequeníssima verba para projetos de prevenção de deslizamentos: eram R$ 53,9 milhões, viraram R$ 2,7 milhões. Restaram pouco mais de 5%. Um acinte. Parte da proposta de emenda à Constituição (PEC) – a chamada PEC da Transição, que tratou de dar alguma realidade à peça orçamentária que estava no Parlamento – foi destinada a tentar corrigir a aberração. Lula decidiu subir o valor para R$ 156,7 milhões, quase três vezes mais do que o valor que havia sido cortado.

São diferenças nítidas entre as prioridades dos dois mandatários, mas o montante ainda é muito aquém do necessário para evitar mortes entre os mais de 11 milhões que moram em áreas de risco no Brasil, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Mais do que dinheiro, é preciso contratar uma ação conjunta entre as esferas do Executivo, como acima ressaltado, e ir além, com uma força-tarefa que envolva também Legislativo – que aprovaria leis que facilitem ou agilizem obras de prevenção e punam gestores negligentes – e Judiciário – que poderia dar clareza à interpretação da legislação afim e, como medida exemplar, acelerar julgamentos que envolvam crimes do tipo.

Na verdade, o que ocorre a cada verão em perdas de vidas nas chuvas em todo o País é apenas sintoma de um problema estrutural muito mais antigo e complexo: a pornográfica desigualdade em que foi erguida e se mantém a sociedade brasileira.

O nó górdio remete, como sempre, à abolição da escravatura feita pela metade, em que o Estado e as classes dominantes pagaram com abandono os séculos de serviços forçados da população negra. Foi esse contingente desamparado e desprotegido que ocupou majoritariamente as encostas, a começar do Morro da Providência, no Rio de Janeiro, naquela que se tornou a primeira favela – ou pelo menos, a primeira memorável – do Brasil.

Visitando São Sebastião em companhia de ministros, Lula encontrou lá o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), e o prefeito do município, Felipe Augusto (PSDB), a quem consolou. Em seu discurso, disse: “Eu acho que essa parceria que estamos fazendo aqui é uma fotografia boa para o nosso País. Eu não sei o partido do prefeito. Sei o partido do Tarcísio. E veja que coisa bonita e simples: nós estamos juntos. Acabou a eleição. Ele tem obrigação de governar o estado. Esse aqui [o prefeito] tem a obrigação de governar a cidade. E eu tenho a responsabilidade de governar o País. Se cada um ficar trabalhando sozinho, a nossa capacidade de rendimento é muito menor. E é por isso que precisamos estar juntos.”

Felipe Augusto apoiou Bolsonaro no segundo turno de 2022 e contribuiu para a virada em São Sebastião do 22 sobre o 13 – Lula havia vencido no primeiro turno. Mas o novo presidente está certo: a eleição passou e a política precisa servir às pessoas, principalmente as mais abandonadas. Para tanto, a mudança deve ser de paradigma: toda a Nação precisa entender que é preciso acabar com o abismo social entre ricos e pobres para que o País sobreviva ao que está por vir. O cenário de mudanças climáticas em um país de extremos econômicos como o Brasil produzirá tragédias que seriam – e podem ser – evitáveis com uma sociedade menos desigual.