Com Tancredo e Itamar, Lula fecha o triunvirato de salvamento da democracia

13 novembro 2022 às 00h00

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Pela terceira vez em quase quatro décadas de redemocratização, o Brasil passa por um momento de juntar seus cacos em meio a um sentimento de que é necessário reunir, também mãos diversas e múltiplos esforços para o sucesso da missão. A diferença é que, pela primeira vez, o Partido dos Trabalhadores faz parte dessa coalização de resgate. Mais do que isso, o PT precisa, pela sobrevida da democracia, saber reger esse concerto.
O primeiro momento foi o ocaso da aventura verde-oliva. Em 1985, depois da euforia singular das ruas com o movimento das Diretas Já, após 20 anos de presidentes militares mandando, desmandando e revezando no poder, veio a frustração pela derrota da Emenda Dante de Oliveira – nome do deputado mato-grossense que a assinou –, que determinaria o voto de brasileiros e brasileiras com efeito imediato. O generalato trabalhou para que as eleições pelo povo não voltasse tão rapidamente e o ex-governador de Minas Gerais Tancredo Neves (PMDB) teve de vencer uma disputa indireta no Congresso, contra o ex-governador paulista Paulo Maluf (PDS).
No Colégio Eleitoral que foi formado para aquele pleito, grande parte dos parlamentares do PDS – como foi rebatizada a Arena, o partido da ditadura –, deixaram a sigla para apoiar o candidato do PMDB – ex-MDB, a oposição ao regime –, na dissidência que foi chamada de Frente Liberal e que geraria, logo depois, o PFL. Na votação para escolha do primeiro presidente da República civil em 21 anos, o PT orientou sua bancada para a abstenção – e expulsou os três deputados que votaram em Tancredo. O ato seguinte do partido, que tinha o sindicalista Luiz Inácio Lula da Silva como líder da bancada, foi se declarar oposição ao governo.
O presidente eleito mineiro tinha participado de toda a conturbada história do Brasil nas cinco décadas anteriores – desde a Revolução de 30, passando pela repressão do Estado Novo, o “golpe branco” de 1945, o suicídio de Getúlio Vargas, os anos JK, a renúncia de Jânio Quadros, a experiência do parlamentarismo – na qual, aliás foi primeiro-ministro –, o golpe de 64 e toda a ditadura cívico-militar. Na política, sabia como ninguém costurar o tecido das alianças e desatar os nós das dissensões. O nome mais que perfeito para uma transição. Internado na véspera da posse, morreu sem colocar a faixa presidencial, no dia 21 de abril de 1985, data da morte de outro mineiro icônico, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes.
O governo foi parar nas mãos do vice, José Sarney, que saiu do PDS para ajudar a criar a Frente Liberal, mas discretamente havia se filiado ao PMDB em agosto do ano anterior. No comando, fez o Plano Cruzado, congelando preços à força – numa estratégia estabanada que ainda hoje é lembrada pelos “fiscais do Sarney”, voluntários que conferiam nos supermercados se os preços haviam sido remarcados ou não. Deixou o País em 1990, um ano mais tarde do que o inicialmente combinado – após aprovação uma emenda – e com a economia em frangalhos. De saldo positivo, em sua gestão foi promulgada a nova Constituição. Ainda fazendo o “jogo do descontente”, o PT, embora tenha assinado o histórico documento, votou contra o texto aprovado.
Confisco e impeachment
O segundo momento de os democratas darem as mãos foi após o fiasco do sucessor de Sarney. O jovial e atlético “caçador de marajás” de Alagoas, Fernando Collor (PRN), foi eleito como salvador da Pátria ao vencer Lula. Sua atuação, porém, seria ruinosa desde o princípio, ao começar seu mandato encaminhando exatamente o que havia dito em campanha que o petista faria: confiscou a poupança da população, levando milhões de brasileiros ao desespero, para depois se afundar em um rumoroso caso de corrupção envolvendo seu tesoureiro de campanha, PC Farias, e denunciado pelo próprio irmão, Pedro Collor. A recém-renascida democracia brasileira via ocorrer o impeachment de seu primeiro presidente eleito pelo povo.
Sobreveio outro mineiro no caminho, o vice Itamar Franco – que, na verdade, nasceu em alto-mar, durante uma viagem de navio pela costa brasileira. Discreto e embirrado, assumiu a Presidência praticamente como um franco atirador. Como a rejeição a Collor era quase unânime em Brasília, tinha quase todos os partidos dispostos a compor seu governo. Quem não quis entrar na grande aliança? O PT, claro, que também ficaria em posição de crítica ao Plano Real, concebido durante o governo de Itamar e tendo à testa o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), então ministro da Fazenda e que, levado pelos bons ventos da estabilidade econômica, se elegeria e reelegeria presidente, batendo Lula nas duas oportunidades.
Lula, tendo o PT sob seu comando, se torna o maestro de mais uma quadra delicada da história nacional
O terceiro momento crítico é o atual. Jair Bolsonaro (PL), um parlamentar de extrema-direita que, antes de surpreendentemente ser eleito presidente, sempre se posicionara como um “outsider” da política – mesmo após 30 anos vivendo nela –, fez um governo que, buscando desconstruir o sistema, corrompeu as bases institucionais. Bastaria o negacionismo irresponsável da pandemia para caracterizar o fosso civilizatório por que a Nação passou, mas o buraco foi cavado muito mais abaixo por conta do viés golpista que sempre permeou os últimos quatro anos. No fim, colocou milhares de militares em cargos civis e um ministério com mais fardas do que os do período dos generais. Passou por cima da legislação eleitoral, da responsabilidade fiscal e das decisões judiciais para tentar vencer as eleições. Torrou bilhões, mas nem todo o jogo sujo foi suficiente para evitar a vitória e o desagravo de Lula, o mesmo que fora presidente por dois mandatos e depois preso e impedido de concorrer à eleição pelo juiz que se tornaria ministro… de Bolsonaro.
Agora é Lula que, tendo o PT sob seu comando, se torna o maestro de mais uma quadra delicada da história nacional. Se sua vitória eleitoral foi uma epopeia de Davi contra o Golias da máquina governamental, empresarial e religiosa de Bolsonaro que só seu carisma com a população poderia conseguir, o novo desafio é ser o almirante da vez em águas tribuladas, como foram Tancredo Neves e Itamar Franco. Lula, se não nasceu nos Gerais, é mineiro de alma.