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Na noite da última terça-feira, 16 de setembro, milhões de brasileiros assistiram atônitos a um dos maiores escárnios já praticados pelo Poder Legislativo desde a redemocratização. Famílias inteiras pararam diante da TV, de celulares e outros dispositivos eletrônicos para acompanhar, incrédulas, pouco mais de 340 deputados federais votarem para se tornar intocáveis, inatingíveis pela lei.

Afinal, a PEC 3/2021, apelidada de PEC da Blindagem, ou, de maneira mais precisa, PEC da Bandidagem, estipula que o próprio Congresso deverá autorizar, por votação, que qualquer um de seus mandatários seja processado criminalmente. Não há metáforas nem hipérboles aqui, caro leitor: a proposta de emenda à Constituição aprovada por maioria na Câmara determina que a Justiça deverá pedir permissão para punir o parlamentar que cometer crimes. Se os nobres pares decidirem que ele não responderá pelo crime que cometeu, assim será.

Não satisfeitos, os parlamentares decidiram, no dia seguinte, quarta-feira, que essa deliberação deveria ser, pasmem, por voto secreto. Hoje, o voto secreto no Congresso é exceção, aplicado somente em alguns casos. Se a proposta também receber aval do Senado, passará a ser regra justamente em uma das situações em que a população mais precisaria saber como vota o parlamentar que elegeu.

A PEC da Bandidagem é, de longe, a medida mais absurda e escandalosa do Legislativo desde a chamada PEC do Estupro (que extinguia a permissão para interromper a gravidez em casos de risco de morte da gestante e de gravidez por estupro). Na prática, é o estágio mais audacioso e escancarado da institucionalização da impunidade, naturalizando-a a ponto de se tornar uma “simples etapa” da Justiça brasileira. Mas leia-se: apenas para deputados e senadores.

Não bastando a barreira para abertura de processo criminal, a PEC 3/2021 também adiciona que no caso de flagrante de crime inafiançável, os parlamentares decidem em até 24 horas sobre a prisão e autorizam, ou não, a formação de culpa. Nesse caso, a votação é secreta. Que grande surpresa.

É claro que a reação à aprovação da proposta foi imediata. Conforme levantamento da Quaest divulgado neste sábado, 20, a PEC da Blindagem recebeu cerca de 83% de críticas nas redes sociais. Segundo os dados, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), que pautou a proposta e patrocinou a aprovação do destaque do voto secreto, foi o grande alvo: cerca de 46% das menções estavam ligadas a ele e à Câmara dos Deputados.

Também é claro que a insatisfação notada nas redes passou do virtual para o mundo real. Neste domingo, capitais e grandes cidades do país inteiro têm manifestações contra a PEC, uma pauta que, incrivelmente, está conseguindo unir esquerda e direita.

Tão logo perceberam o furor da população diante do espetáculo de horrores no plenário, deputados que votaram “sim” à PEC da Bandidagem passaram a se retratar nas redes sociais. A deputada federal Silvye Alves foi uma delas. Em vídeo, afirmou ter sido coagida por figuras influentes no Congresso Nacional a alterar o voto contrário feito por volta das 19h, sob ameaça de retaliação política.

“Falaram que eu teria retaliações, mas não sei que tipo de retaliações deputados podem sofrer.” Ela ainda reconheceu ter sido “covarde”, disse que “não teve forças para fazer o correto” e anunciou que deixará o partido União Brasil.

O deputado Thiago de Joaldo (PP-SE) também se manifestou, afirmando que a votação resultou em um “remédio que saiu mais letal que a enfermidade que queria tratar”. Já os deputados Merlong Solano (PT) e Pedro Campos (PSB) também se desculparam pelo voto.

Destaca-se: no caso de Goiás, apenas três deputados federais votaram contra a PEC da Bandidagem: Flávio Morais (PDT), Adriana Accorsi (PT) e Rubens Otoni (PT). Outros 14 parlamentares goianos votaram “sim” à proposta.

Trata-se de uma marcha da vergonha, pública e amoral, cujo ritmo foi ditado por uma ideia indefensável levada a cabo. O Congresso, inclusive, parece ter criado certo fetiche pela palavra “impunidade”, já que a maioria dos que votaram pela PEC da Blindagem são os mesmos que defendem e votarão pela anistia daqueles que atentaram contra o Estado Democrático de Direito.

Enquanto a PEC impede que possíveis criminosos respondam por seus crimes, a anistia os perdoa.

É inevitável associar essa postura ao famoso discurso de Carlos Lacerda que dizia: “O senhor Getúlio não deve ser candidato. Se for candidato, não deve ser eleito. Se for eleito, não deve tomar posse. Se tomar posse, não pode governar.”

Hoje, ecoa dos atos de congressistas uma lógica semelhante: “O criminoso não pode responder criminalmente. Se responder, não pode ser condenado. Se for condenado, não pode ser preso”. O Brasil realmente não é para amadores.