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Ministério da Saúde alega “manipulação” no número de óbitos e, sem qualquer aviso, retira dados completos do ar

Nova forma de divulgação dos casos de Covid-19 do Ministério da Saúde - Foto Reprodução Ministério da Saúde
Painel Coronavírus, do Ministério da Saúde, desde sábado, 6, se resume a divulgar os novos registros de pacientes recuperados em 24 horas, os novos caso confirmados de Covid-19 e a novas constatações de mortes diárias pela doença| Foto: Reprodução/Ministério da Saúde

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Na gestão do então ministro Henrique Mandetta (DEM-MS), o Ministério da Saúde divulgava os dados completos de casos da Covid-19 no Brasil quando começavam as entrevistas diárias, sempre às 17 horas. Com a demissão de Mandetta, no dia 16 de abril, o novo titular da pasta, Nelson Teich, não dava mais satisfação pública dos atos do ministério diariamente. O horário da divulgação do balanço de casos suspeitos, confirmados e mortes, com a descrição completa do avanço da pandemia no Brasil, passou a ser 19 horas.

29 dias depois de assumir o cargo, Teich pediu demissão. Desde a saída do segundo ministro da Saúde na gestão do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o secretário-executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, que assumiu a função depois da saída de Mandetta, ocupava as funções como ministro informal da Saúde. Só na quarta-feira, 3, Pazuello foi confirmado como ministro interino.

Na quinta, 4, e sexta-feira, 5, o Ministério da Saúde alegou problemas técnicos e começou a divulgar os dados aproximadamente às 22 horas. Mas a desculpa da revisão dos dados diários da Covid-19 foi rapidamente desmascarada. Ao ser perguntado na noite da mesma sexta por um repórter da CNN Brasil por que o balanço diário passou a ser divulgado às 22 horas, Bolsonaro foi claro: “Acabou matéria no Jornal Nacional”.

“TV Funerária”

Após ouvir risadas de apoiadores na entrada do Palácio da Alvorada, o presidente continua: “Mas é para pegar os dados mais consolidados. E tem que divulgar os mortos no dia. Por exemplo, ontem [quinta] praticamente dois terços dos mortos de dias anteriores. Tem que divulgar o do dia. O resto, consolida pra trás. Se quiser fazer um programa do Fantástico todinho sobre mortos, né, nas últimas semanas, tudo bem. Se bem que o que falta ainda, mais difícil, tem que saber quem perdeu a vida por causa do Covid ou com Covid”.

O repórter pergunta se partiu do Palácio do Planalto a ordem de divulgar os dados às 22 horas. “Não interessa de quem partiu. Acho que é justo sair às 10 da noite. Saiu um dado completamente consolidado. Muito pelo contrário, ninguém tem que correr para atender a Globo”, responde Bolsonaro, o que mais uma vez, arranca risadas dos apoiadores que se aglomeram em frente ao Alvorada. O presidente termina a fala ao chamar a Globo de “TV Funerária”.

Às 21h45, o apresentador William Bonner voltou ao ar em um plantão da Globo, com os dados divulgados naquele momento pelo Ministério da Saúde, logo após o Jornal Nacional encerrar a edição de sexta-feira.

“O Ministério da Saúde acaba de divulgar que 30.830 brasileiros entraram nos registros oficiais de casos de Covid-19. Segundo o Ministério da Saúde, o Brasil tem agora um total de 645.771 infectados. Nas últimas 24 horas, o ministério registrou 1.005 óbitos. E com isso, o contingente de brasileiros mortos chegou a 35.026, segundo o Ministério da Saúde do governo do Brasil.”

Omissão de dados

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Foi então que, no sábado, 6, sem qualquer aviso, a página do Ministério da Saúde responsável por divulgar todos os dados referentes à Covid-19 passou a contra apenas com os novos recuperados da doença nas últimas 24 horas – com destaque em verde, os novos casos confirmados no último dia e as mortes constatadas pela doença em 24 horas. Foram retiradas todas as outras informações, inclusive o total de casos, mortes, pacientes com suspeita da doença, detalhes dos pacientes. Nada além dos três dados totais diários, por região e Estado.

Ainda na sexta, depois da divulgação dos dados da pandemia no Brasil atualizados no plantão da Globo, o Ministério da Saúde decidiu revisar os dados de mortes por Covid-19 no País. De acordo com a colunista Bia Megale, do jornal O Globo, a decisão foi anunciada pelo futuro secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta, Carlos Wizard, que considera o total de óbitos pela doença “fantasiosos ou manipulados”.

“Tinha muita gente morrendo por outras causas e os gestores públicos, puramente por interesse de ter um orçamento maior nos seus municípios, nos seus estados, colocavam todo mundo como covid. Estamos revendo esses óbitos”, disse ao O Globo. Wizard é fundador e ex-proprietário das redes de escolas de inglês Wizard, além de dono das marcas KFC e Pizza Hut no Brasil.

Entrevista curiosa

Na manhã de sexta-feira, o mesmo Carlos Wizard já tinha dado uma entrevista para lá de controversa à coluna Painel S.A., do jornal Folha de S.Paulo. O futuro secretário do Ministério da Saúde diz que já interrompeu todas as compras cara de respiradores de outros países e que o Brasil se tornará exportador do produto.

Curioso é que, na mesma entrevista, Wizard afirma que a primeira reunião se deu na segunda-feira, 1º, dia em que o Brasil completou 97 dias desde a confirmação do primeiro caso de Covid-19 e continua com dificuldade para equipar os leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI). O primeiro hospital de campanha construído pelo governo federal, o de Águas Lindas de Goiás, no Entorno do Distrito Federal (DF), só foi inaugurado ontem, depois de muito atraso e problemas no repasse da unidade ao governo goiano.

Na entrevista, Wizard deixa claro que trabalhará não apenas para aplicar recursos público na fabricação acelerada da hidroxicloroquina, como incentivará o uso para todos os pacientes da Covid-19, inclusive aqueles com suspeita de sintomas mais leves. Não importa quantos estudos saiam e mostrem a ineficácia no combate à doença e os riscos à saúde se o paciente não tiver malária, artrite reumatoide ou lúpus.

“É simplesmente uma questão de lógica. Se usam por décadas a hidroxicloroquina, em cinco dias, que dano vai causar para o sujeito?”, adota Wizard o discurso bolsonarista da defesa de um remédio sem comprovação no combate à Covid-19.

Carlos Wizard - Foto Fabiano Accorsi Divulgação
Futuro número três do Ministério da Saúde, empresário Carlos Wizard não só mostra que não entende da área como comparou a hidroxicloroquina com a Coca-Cola em entrevista | Foto: Fabiano Accorsi/Divulgação

Coca-Cola?

Mas, pouco antes, o novo secretário faz uma comparação digna de nó na cabeça de qualquer pessoa com capacidade mínima de interpretação de texto. Ele compara a hidroxicloroquina ao refrigerante Coca-Cola, duas coisas completamente iguais.

“Eu não entendo por que se criou uma questão ideológica contrária a essa orientação técnica. Meu receio é que, amanhã, se o presidente Bolsonaro anunciar em Brasília ‘gente, se vocês tomarem um copo de Coca- Cola por dia, vocês vão ficar imunizados contra a Covid-19’, meu receio é que, no dia seguinte, a metade da população deixe de tomar Coca-Cola”, dispara o empresário, que, pelo visto, nada entende de saúde, mas ganhará um cargo no ministério que cuida da área durante uma pandemia.

O novo número três do Ministério da Saúde confirmou ao O Globo que o governo comprará 10 toneladas de matéria-prima da Índia para fabricação de cloroquina pelo Exército. “Vamos apostar 100%, seguir e defender a cloroquina. Esperamos que, nos próximos 30 dias, possamos receber essa carga no Brasil”, destacou Wizard na quinta-feira.

Brincadeira cara

O custo da aventura, apenas nesta empreitada, será de US$ 6 milhões, aproximadamente R$ 30,3 milhões, fora tudo o que já foi gasto nas remessas fabricadas até aqui pelo governo. E, é bom sempre lembrar, sem comprador definido. Isso tudo ao mesmo tempo em que mais de 300 cargos já foram distribuídos a indicações de líderes de partidos do Centrão no Congresso, que foi recentemente apelidado de “Arenão”.

Enquanto isso, o jornalismo profissional e a sociedade driblam até onde podem as tentativa do governo de esconder dados que evidenciam o desastre da gestão Bolsonaro no enfrentamento à pandemia, mas que são evidenciados diariamente pelas secretarias estaduais e municiais de Saúde, além dos cartórios, onde a escalada de óbitos por síndromes respiratórias agudas graves, das quais faz parte a Covid-19, assusta até os negacionistas da subnotificação.