Logo depois do anúncio da cassação do mandato do deputado federal Deltan Dallagnol (Podemos-PR) no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), por 7 votos a 0, começou a circular nas redes sociais um meme em que Sergio Moro (UB-PR) aparecia ao lado do agora ex-parlamentar, que, na imagem, está com um fone de ouvido. O ex-juiz, ex-ministro e atual senador pergunta ao “companheiro” de Operação Lava Jato: “O que você está ouvindo?”. O ex-procurador da República e agora também ex-deputado responde: “É Rita Lee: ‘Agora só falta você’”.

Entendedores do repertório da já saudosa Rainha do Rock Nacional e dos movimentos recentes da política brasileira entenderão. A cassação de Dallagnol, como esperado, foi seguida de muitas manifestações indignadas vindas de políticos e grupos de direita, bem como de comemoração e bastante ironia por parte de seus opositores, notadamente petistas, que sempre tiveram a Lava Jato atravessada na goela.

O deputado lavajatista, claro, vai recorrer. Tem direito ao “jus esperneandi”, mas terá de deixar o mandato desde já – quem assume seu lugar é um pastor bolsonarista que prega contra a “ideologia de gênero”, Itamar Paim (PL). A chance de sucesso dos recursos que impetrará é basicamente nula. Ou seja, Deltan Dallagnol, na prática, “foi” um deputado, de fugaz trajetória e que, no futuro, será lembrado como aquele que, em sua curta passagem, disse que havia um projeto de lei para censurar versículos da Bíblia. Dallagnol, o Breve.

De qualquer forma, toda cassação é, no fim de tudo, triste. A perda do mandato de um político eleito deve ser encarada como um fracasso da democracia, não importa que seja justa ou não a deposição que tenha ocorrido. Se foi justa, é porque houve um desvio de conduta do apenado que afetou a ordem democrática; se foi injusta, houve um desvio de conduta da ordem democrática para afetar o apenado.

A decisão que cassou Dallagnol se baseou em duas ações, uma da Federação Brasil da Esperança (PT-PCdoB-PV) e outra do PMN, ainda no período de campanha, segundo as quais ele teria infringido a legislação ao se exonerar do Ministério Público Federal com vistas a se livrar da Lei da Ficha Limpa. É que pesavam contra ele, como procurador da República, 15 procedimentos que estavam em apuração.

Pela Ficha Limpa – da qual o agora ex-deputado era ardoroso defensor, é bom ressaltar –, membros do Ministério Público que tenham sido demitidos ou aposentados compulsoriamente em um processo administrativo disciplinar (PAD) ficam inelegíveis por oito anos (o mesmo vale para carreiras do Judiciário). Além disso, para evitar que promotores e procuradores pedissem demissão antes da conclusão de um PAD para se livrar da inelegibilidade, a lei também estabeleceu que essas autoridades não podem disputar eleição caso peçam exoneração com um processo em andamento.

Dallagnol havia passado por dois PADs, que resultaram em uma pena de censura e uma advertência. No momento em que se exonerou, ambos já estavam concluídos. Nada em andamento, portanto. Porém, para evitar que alguma das 15 denúncias virasse processo disciplinar, ele, então, deixou o cargo 11 meses antes das eleições. Por que não esperou até o limite de 6 meses? Ora, resta óbvio que não queria arriscar, por dois pares de salários, a carreira política que lhe batia à porta, tendo na berlinda a abertura de um PAD ou mais.

O relator Benedito Gonçalves julgou que o ex-procurador deu uma de “espertinho” para burlar a lei. Seus colegas de TSE compraram a tese. Do ponto de vista técnico, no entanto, há divergências entre juristas renomados sobre a decisão unânime do julgamento. O ex-juiz eleitoral Márlon Reis, considerado idealizador da Lei da Ficha Limpa, afirmou que a decisão do TSE foi “irretocável”; o ex-ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Marco Aurélio de Mello concedeu entrevistas se dizendo “perplexo” com ela; o renomado Miguel Reale Júnior, um dos autores do pedido de impeachment de Dilma Rousseff (PT) e ex-ministro da Justiça no governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), tomou a sentença como “arbitrária”.

Márlon Reis diz que Dallagnol fez de sua exoneração uma manobra para driblar a Lei da Ficha Limpa e que o TSE julgou o “espírito da lei”, para evitar que casos semelhantes se repitam. Reale Júnior alega que decisões assim, que não seguem à risca a letra da lei, levam o País para “um campo de abuso de direito”. É completamente plausível considerar que ambos estão certos, cada qual com sua argumentação.

Sergio Moro, o juiz da coisa toda, teve engajamento explícito com a Lava Jato, atuando não como magistrado, mas tornando-se uma espécie de “promotor de luxo”

O pano de fundo para toda a polêmica está assentado nas palavras “impunidade” e “corrupção”. O Brasil tem na combinação desses dois termos um problema crônico e grave. A partir da redemocratização, houve uma repercussão maior dos malfeitos com o dinheiro público – notícias que, obviamente, haviam sido “neutralizadas” ou abafadas durante a ditadura militar.

Com a Nova República, vieram denúncias de compra de votos para dar mais um ano de Presidência a José Sarney, o Fiat Elba e a Operação Condor de Fernando Collor, os anões do Orçamento, a emenda da reeleição de FHC, a pasta rosa, o mensalão do PT, o mensalão tucano, o petrolão. Os escândalos em série resultaram em uma comoção popular tal que mudou os rumos das grandes manifestações de 2013 – as “jornadas de junho”, que inicialmente eram protestos contra a qualidade dos serviços públicos – e fizeram brotar a Lava Jato, encarada como oportunidade única de, literalmente, salvar a Pátria. Não era, então e ali, uma questão ideológica, de ser de direita ou de esquerda.

Sergio Moro, o juiz da coisa toda, teve engajamento explícito com a operação, atuando não como magistrado, mas tornando-se uma espécie de “promotor de luxo”. E era nessa (e por essa) função distorcida que recebia aplausos de tucanos (diretamente interessados no desgaste do governo petista), socialistas – boa parte do PSOL, por exemplo, era lavajatista – e da direita, inclusive a extrema. De todos os lados, vinham palmas como as que os habitantes de Gotham City destinam a Batman. Moro não era um juiz rigoroso, mas um “herói” justiceiro; Deltan, seu Robin. Mas quem se importava?

A “autonomia jurídica” que se deu a Lava Jato, devidamente blindada pelos grandes veículos de comunicação, desaguou em prejuízos muito além do PT, que teve a presidente Dilma Rousseff deposta e seu antecessor, Luiz Inácio Lula da Silva, preso. Ambos os processos, diga-se, cheios de um “espírito da lei” bem mais fantasmagórico do que o que acharam para cassar Dallagnol.

A Lava Jato matou (matou?) a praga e o gado; destruiu todas as maiores empresas de um importante setor da economia nacional, o da construção civil; criou multidões de desempregados; desestabilizou as instituições e criou um Judiciário fora da lei cujas sequelas afetam hoje quem antes era algoz; levantou a bandeira da antipolítica e entregou na bandeja a Presidência da República ao inepto deputado Jair Bolsonaro (PL). Sergio Moro, que havia prendido Lula, o favorito das pesquisas eleitorais, ganhou o Ministério da Justiça como retribuição.

O grande mérito de Bolsonaro, aliás, foi ter dado cabo, ainda que por motivos tortos, à Lava Jato, que, parafraseando o amor de Vinícius de Moraes, foi ruim enquanto durou. Mas os efeitos dela continuam: graças à operação fajuta que deu fama a BatMoro e DallaRobin, o combate à corrupção se tornou um tema rumo à saturação sem ter sido enfrentado como se deveria. Resta saber se, de fato, Sergio Moro é o próximo a ser alvo de um “espírito da lei” que com gosto aplicou – erradamente, mas com convicção.