Campos de murundus: a vegetação mais intrigante do Cerrado

04 outubro 2025 às 21h00

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Indiara Nunes Mesquita Ferreira, Danielle Oliveira Diniz Fagundes, Carlos de Melo e Silva Neto,
Lorena Lana Camelo Antunes, Rafael Barbosa Pinto e Mariana Pires de Campos Telles
Especial para o Jornal Opção
Campos de murundus, também conhecidos como “Parque de Cerrado”, são uma das 11 principais fitofisionomias do bioma Cerrado, que incluem formações florestais (mata seca, mata ciliar, mata de galeria, cerradão), as formações savânicas (cerrado “strictu sensu”, parque de cerrado, palmeiral, vereda) e as formações campestres (campo sujo, campo limpo e campo rupestre). O termo “murundu”, proveniente do dialeto quimbundo, refere-se aos característicos montículos de solo desta vegetação, que mais se parecem com pequenas ilhas em médio relevo. A paisagem típica desta vegetação é constituída por áreas sazonalmente inundáveis e planas, na qual incontáveis montículos de terra (murundus) cobertos por vegetação lenhosa típica de cerrado distribuem-se sobre um campo graminoso.
Os murundus funcionam como verdadeiras ilhas durante a época das chuvas, protegendo a vegetação e a fauna de cerrado contra alagamentos e a saturação hídrica do solo. Uma curiosidade é que na estação chuvosa, os solos entre os murundus se tornam alagados em razão dos atributos físicos que favorecem a baixa infiltração de água, e em certos casos, o lençol freático pode atingir a superfície do solo nessa época do ano.
Esse tipo peculiar de fitofisionomia não é exclusivo do nosso país, podendo ser encontrado em inúmeras regiões ao redor do mundo e por isso recebe várias denominações, como: earth platforms; cerrado island around térmite hills; termiten savannen; cerritos; tatucos, dentre outros. No Brasil, podem ocorrer em diferentes biomas sendo conhecidos como murundus, monchão, ilhas, morretes e as paisagens com esse tipo topográfico podem ser denominados de campos de murundus e/ou Parques de Cerrado.
Os campos de murundus na bacia do rio Araguaia
A planície do rio Araguaia abriga a mais vasta e expressiva área de ocorrência de campos de murundus em escala global, sendo, por esse motivo, considerada por diversos especialistas como uma região de importância biológica extremamente elevada. Recomenda-se, portanto, a adoção de medidas voltadas ao manejo sustentável e à criação de unidades de conservação. Dentro dessa planície, destaca-se o Parque Estadual do Araguaia, em Mato Grosso, que reúne a maior área contínua desse tipo de vegetação no Brasil. Nesse sentido, conhecer melhor os campos de murundus é uma das prioridades de pesquisa no contexto dos nossos projetos da região do Araguaia, incluindo o “Araguaia Vivo 2030” (@araguaiavivo), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG) e gerenciado pela Tropical Water Research Alliance (TWRA), com apoio do PPBio Araguaia (@ppbio.araguaia), executado pela PUC-Goiás com apoio do CNPq.

Os murundus são revestidos predominantemente por vegetação de savana arbórea-arbustiva. Entre as espécies arbóreas mais frequentes destacam-se: Alibertia edulis, Andira cuyabensis (angelim), Byrsonima verbascifolia (murici), Caryocar brasiliense (pequi), Connarus suberosus, Copaifera langsdorffii (pau d’óleo), Curatella americana, Dipteryx alata (baru), Eriotheca gracilipes, Erytroxylum tortuosusm, Kielmeyera coriacea (pau-santo), Maprounea brasiliensis, Qualea grandiflora (pau-terra), Qualea parviflora e Stryphnodendron adstrigens (barbatimão). Estas espécies estão distribuídas nos murundus conforme os padrões de resistência à inundação em função do encharcamento do solo na época chuvosa.
Nas áreas que circundam os murundus ocorre vegetação de campo limpo, onde predominam espécies herbáceas e subarbustivas, adaptadas às condições ambientais de encharcamento sazonal do habitat. Durante a estação chuvosa, o lençol freático se eleva, provocando supersaturação e afloramento da água na superfície do solo. Já no período seco, verifica-se o esvaziamento gradual dos corpos d’água. Essa variação no regime de inundações, marcada por oscilações acentuadas do nível freático, influencia diretamente na diversidade florística do campo limpo que está sujeito a alagamentos na época das chuvas. Por outro lado, a composição herbáceo-subarbustiva dos campos de murundus ainda é pouco estudada. As famílias botânicas com maior ocorrência são Poaceae, Asteraceae e Cyperaceae, as quais habitam frequentemente os ecossistemas campestres úmidos.
Como essa vegetação peculiar surgiu?
Duas hipóteses principais foram elaboradas para explicar a possível origem dos murundus. A primeira e mais difundida relaciona-se a fatores bióticos, segundo a qual os murundus seriam formados a partir da atividade de sucessivas gerações de colônias de cupins em um processo de construção e degradação dos ninhos. A segunda está ligada a fatores abióticos, especialmente relacionados a processos de dinâmica superficial da água, a partir dos quais os murundus seriam formações residuais produzidas pela diferença de erosão diferencial do solo.
No entanto, há controvérsias! Para alguns estudiosos, cada hipótese pode trazer fatos, mas traz também contradições a respeito das formações dessas estruturas em forma de ilha. Dessa forma, em tempos atuais ainda não existe um consenso sobre a verdadeira gênese dos murundus.
Por que nos preocuparmos com os campos de murundus?
Poderíamos listar uma série de fatores que nos fariam voltar os olhos com mais cuidado e atenção para essas áreas, porém vamos nos ater aos principais. As áreas de campos de murundus possuem várias peculiaridades e uma delas diz respeito às características próprias da vegetação que se diferem em composição e estrutura entre as ilhas e as áreas em seu entorno. Isso, por si só, já remete à expressiva biodiversidade dessa fitofisionomia nos seus biomas de ocorrência. Além da diversidade florística, estudos recentes apontam que esses solos hidromórficos acumulam muita matéria orgânica, assumindo papel de sumidouros de carbono, o que pode contribuir para as mudanças climáticas, reforçando assim a necessidade de sua preservação. São áreas que funcionam como “ilhas de refúgio” para muitas espécies em períodos climáticos extremos. Em secas prolongadas, garantem a sobrevivência de plantas mais sensíveis, além de servir como fonte de água para animais silvestres.
Desse modo, os campos de murundus são fundamentais para a manutenção e abastecimento hídrico das bacias hidrográficas a que se encontram associadas, uma vez que atuam como reservatório de água no período da seca. Na prática, os murundus, assim como outras áreas úmidas do Cerrado, funcionam como uma esponja, que vai liberando água gradualmente ao longo da estação, mantendo a umidade durante o período da seca. A estrutura natural do murundu contribui para a recarga de aquíferos mais rasos, auxiliando a manter o fluxo de córregos em tempos de estiagem, além de amortecer os picos de cheia, funcionando como um regulador natural das enchentes.
No entanto, estudos publicados em 2024 na revista “Hidrobiologia”, a partir de dados históricos compilados da Agência Nacional de Águas (ANA), juntamente com dados obtidos do MapBiomas, revelaram que nos últimos 40 anos já houve uma redução entre 35% e 50% da lâmina d´água na bacia do Araguaia, um assunto já discutido diversas vezes aqui na coluna “Araguaia em Foco”. Um dos principais motivos seria a alteração no uso do solo. Fatores antrópicos como a construção de canais escavados ao longo da superfície do solo (drenos) nessas áreas úmidas, para uso agrícola, podem causar perdas imensuráveis no médio e longo prazo, bem como o desmatamento e as queimadas.
É comum encontrar áreas de murundus sendo desmatadas ou drenadas para se tornarem pastos de pecuária extensiva, porém essas ações comprometem a capacidade do solo de realizar a recarga dos cursos hídricos, prejudicando a qualidade e o volume de água dos cursos próximos a médio e longo prazo. Em Goiás, estudos realizados em campos de murundus convertidos em áreas agrícolas evidenciaram variações tanto no nível do lençol freático como na estrutura fitossociológica dessa fitofisionomia, causando a destruição de todo um ecossistema complexo atrelado a uma importante cadeia relacionada à fauna e à flora.

A Legislação de proteção dos Campos de murundus no Centro-Oeste ainda é incipiente
Devido à fragilidade e importância dos campos de murundus no bioma Cerrado, em 2007, no estado de Goiás, foi criada a Lei Estadual n. 16.153 que definiu essas áreas como “Áreas de Preservação Permanente” (APP), já que constituem um tipo de reserva de biodiversidade da flora e da fauna. Porém, em 2019 essa lei foi revogada, sendo restabelecida em 2020 por meio da Lei 20.773 que estabeleceu ainda uma faixa de proteção de 50 metros a partir de sua borda exterior, constando também na Política Florestal do Estado de Goiás (Lei n° 18.104/2013).
Outros estados onde os murundus ocorrem também apresentam legislação, decretos ou regulamentações que abrangem a proteção desta fitofisionomia. No Distrito Federal a Instrução Normativa 39/2014 estabeleceu essas áreas como APP e uma faixa de proteção de 50 m a partir das bordas da vegetação. Estudiosos da área defendem que essa faixa de proteção deveria ser ampliada e conectada com corredores ecológicos, o que garantiria a manutenção da biodiversidade e dos serviços ecossistêmicos.
No Mato Grosso do Sul, a Lei Estadual nº 6.160/2023 visa a preservação do bioma Pantanal, incluindo os murundus entre as formações protegidas. No estado do Mato Grosso, o Decreto nº 785/2021 regulamenta a política estadual de proteção da planície alagável do Pantanal, definindo que o manejo da vegetação nos murundus deve preservar sua integridade. Apesar deste decreto, um mais recente (Decreto nº 774/2024) atualizou a regulamentação do licenciamento ambiental e uso do fogo, possibilitando o manejo e supressão de vegetação lenhosa da matriz campestre, desde que a vegetação nos próprios murundus seja preservada.
Infelizmente, em nível federal, nenhuma lei é específica para a proteção dos campos de murundus, sendo a legislação que mais se aproxima da proteção desta vegetação a Lei 12.651/2012, que estabelece a “proteção de olhos d’água” incluída na base normativa para APP/RL (Reserva Legal) em geral. No entanto, é urgente que seja reavaliado o manejo do solo dessas áreas, de modo que haja sustentabilidade no modelo de produção adotado e se preserve essa fitofisionomia que sustenta vidas, auxilia na regulação do clima e assegura a água para as gerações presentes e futuras.
Confira quem são os autores do artigo
Indiara Nunes Mesquita Ferreira – pesquisadora em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG e do PPBio Araguaia (CNPq).
Danielle Oliveira Diniz Fagundes – curadora do Herbário UFG e colaboradora do Projeto Araguaia ViVo 2030.
Carlos de Melo e Silva Neto – Professor da UEG Ipameri e do PPG em Recursos Naturais do Cerrado (RENAC), Tecnólogo do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás (IFG) e pesquisador em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG e do PPBio Araguaia (CNPq).
Lorena Lana Camelo Antunes – pesquisadora em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG e do PPBio Araguaia (CNPq).
Rafael Barbosa Pinto – Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG), e pesquisador em Análise Integrativa da Biodiversidade do programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG e do PPBio Araguaia (CNPq).Mariana Pires de Campos Telles – Professora da PUC Goiás e da Universidade Federal de Goiás (UFG), coordenadora geral do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA/FAPEG e do PPBio Araguaia (CNPq).