A ilusão dos peixamentos: quando a boa intenção vira ameaça
15 novembro 2025 às 21h00

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Por: Fabrício Barreto Teresa, Carla Vitória Alves Helou Soares, Emilly Layne Martins do Nascimento, Felipe Esteves Pinto, Jhonatan Silva Lima, Kathleen Mahra da Silva Alcântara Castro, Paulo Vitor Santos Rabelo, Victor Yuri Da Silva Moreira, Wagner Martins Santana Sampaio e Wellington Adriano Moreira Peres – Especial para o Jornal Opção
Você já ouviu falar em peixamento ou repovoamento de peixes? Esses são os nomes dados à soltura de peixes nos rios ou lagos, muitas vezes com a intenção de “repor” indivíduos de espécies cujas populações estariam diminuindo. À primeira vista, parece uma boa ideia soltar peixes para que se possa pescá-los no futuro, depois que eles crescerem. Essa parece ser uma solução simples em resposta ao declínio das populações de peixes. Mas será que funciona assim mesmo? Neste texto, vamos explicar por que, apesar de popular, o peixamento não é uma solução eficaz para recuperar populações de peixes. Pelo contrário, essa prática normalmente causa mais prejuízos do que benefícios.

O peixamento tem se tornado cada vez mais comum no Brasil, conforme levantamento realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Tocantins e da Universidade Estadual de Maringá, publicado 2023. Muitas vezes, essas ações são promovidas por políticos, empresários ou até mesmo por órgãos públicos, normalmente com boas intenções, mas sem os devidos cuidados técnicos. E o resultado? Mais pressão sobre o ecossistema e sobre os peixes que ainda restam nos rios.
A capacidade de suporte
Cada rio possui uma “capacidade de suporte”, ou seja, uma quantidade máxima de peixes de cada espécie que ele consegue manter ao longo do tempo. Obviamente, o ambiente é dinâmico e a capacidade de suporte varia de acordo com diversos fatores: as condições abióticas no ambiente, a oferta de alimento e as interações entre as espécies. O problema ocorre quando as alterações ambientais nos rios reduzem a capacidade de suporte. Entre essas alterações, podemos citar o assoreamento, poluição, redução da vazão, construção de barragens, entre outros fatores, que aumentam a mortalidade dos peixes e/ou dificultam a reprodução. A degradação das matas ciliares que ocorre nas áreas de cabeceiras reduz a disponibilidade de alimento para os peixes menores que servem de alimento para os maiores. Portanto, a redução dos peixes nos rios é reflexo, em grande parte, da redução da capacidade de suporte resultante dos impactos humanos que ocorrem naquele rio e nos seus afluentes.
Simplesmente soltar mais peixes no rio não ajuda nesse contexto. Supondo que os peixes soltos sejam da mesma espécie daqueles que já ocorrem no rio, esse aumento da população que ocorre após a soltura dos alevinos excederá a capacidade de suporte do ambiente. Ou seja, o ambiente não consegue sustentar esse excesso e a tendência natural é que a população diminua novamente, até se estabilizar no limite que o ambiente comporta. Isso acontece porque o problema real não foi resolvido. Apenas colocar mais peixes em um rio que já não tem condições para manter populações maiores é como colocar mais bocas para se alimentar de um bolo que já é pequeno.
Podemos fazer uma analogia com um copo com água. O copo é o ambiente e a água são os peixes. Quando o ambiente é degradado pelas atividades humanas, é como se o copo diminuísse de tamanho. Um copo menor comporta menos água, assim como um ambiente degradado suporta menos peixes. Portanto, soltar peixes em excesso em um ambiente já comprometido é como tentar encher demais um copo pequeno. A água transborda e se perde. O mesmo acontece com o peixamento, sem condições adequadas, os peixes liberados não sobrevivem ou causam a morte dos que já estavam no local.
Introdução de espécies exóticas e híbridos
Cada bacia hidrográfica abriga um conjunto de espécies típicas, muitas das quais são exclusivas daquela região e não ocorrem em nenhum outro lugar. Essas espécies convivem há milhares de anos e desenvolveram adaptações que permitem essa coexistência. Espécies que não são naturais da bacia são consideradas exóticas e sua introdução, como por exemplo, nos peixamentos, pode causar sérios impactos, como a substituição ou até o desaparecimento de espécies nativas. Isso acontece porque os peixes exóticos podem se alimentar das espécies nativas, competir e até hibridizar com elas. Essas espécies exóticas muitas vezes não possuem predadores naturais ou competidores que poderiam frear seu crescimento populacional, então, muitas vezes aumentam sua população e intensificam seus efeitos negativos sobre as nativas.
É muito comum que os peixamentos sejam feitos com espécies exóticas, como tilápia, carpa e outras. Mas é importante lembrar que até mesmo espécies brasileiras podem ser consideradas exóticas, dependendo da bacia em que são soltas. Por exemplo, o tambaqui, que é nativo da bacia Amazônica, não é nativo das bacias do Tocantins-Araguaia, São Francisco, tampouco das bacias que correm para o sul como o Paraguai e Paraná. Ou seja, a soltura de tambaquis nesses rios caracteriza a introdução de uma espécie exótica. E é fundamental reforçar que introduzir espécies exóticas no ambiente natural sem as devidas licenças é crime ambiental. Vale também destacar que a equipe de pesquisadores do Programa “Araguaia Vivo” da TWRA/FAPEG e também do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia da Biodiversidade e Uso Sustentável de Peixes Neotropicais (INCT Peixes) tem como um dos seus objetivos estudar os hábitos alimentares e reprodutivos do tambaqui no Rio Araguaia a fim de subsidiar a análise dos impactos dessa espécie no ecossistema.
Alguns peixamentos são realizados com a intenção de “repovoamento” com espécies nativas. Entretanto, até mesmo esses não estão livres do problema da introdução de espécies exóticas, pois entre os milhares de alevinos da espécie nativa, é comum que sejam liberados também indivíduos de outras espécies similares, tendo em vista que muitas espécies de peixes possuem alevinos muito parecidos.
A Sociedade Brasileira de Ictiologia publicou em seu boletim (nº 145, 2024) uma nota técnica sobre o assunto, a qual foi assinada por 70 pesquisadores especialistas. Nessa nota, intitulada “O Mito da Conservação por meio de Peixamentos: Impacto das espécies não nativas usadas como pretexto para conservar estoques naturais de peixes no Brasil”, os pesquisadores alertam para o problema da introdução das espécies não nativas pelos peixamentos e recomendam o combate à banalização e popularização dessa prática.
Introdução de parasitas e doenças
Cada organismo é um ecossistema ambulante ou nadante, no caso dos peixes. Isso significa que ele é o portador de diversos outros organismos, dentre os quais os parasitas. De fato, os peixes desempenham um papel fundamental como hospedeiro de diferentes grupos parasitários, que se instalam em regiões como tegumento, nadadeiras, cavidade bucal, brânquias, trato gastrointestinal e musculatura, provocando impactos significativos à saúde e à biologia desses animais. Alguns desses parasitos apresentam importância zoonótica e podem representar riscos à saúde humana, especialmente quando o pescado é consumido cru, mal-cozido ou insuficientemente preparado.
A soltura de peixes em um rio ou lagoa significa que está sendo introduzida também toda a fauna acompanhante, o que inclui também seus parasitas. Muitos desses parasitas podem ser exóticos, ou seja, não nativos daquele local, facilitando a introdução de parasitos em novas áreas. A chegada desses novos parasitos pode comprometer não somente a saúde dos peixes, mas também toda a cadeia alimentar associada, o que inclui também os humanos que consomem os peixes infectados.
Efeitos genéticos
O sucesso dos peixes em seu ambiente natural é resultado de um longo processo de seleção natural, que favoreceu características genéticas e comportamentais ajustadas às condições locais. Essas adaptações estão inscritas no seu material genético, incluindo comportamentos complexos, como a migração reprodutiva em determinadas épocas do ano. Assim, a composição genética das populações selvagens reflete diretamente os desafios impostos por cada ambiente.
Por outro lado, os peixes produzidos em cativeiro para repovoamento estão sujeitos a processos que comprometem sua qualidade genética. Alevinos costumam ser obtidos a partir de poucas matrizes, muitas vezes de linhagens domesticadas e submetidas à seleção artificial visando produtividade. O resultado é um conjunto genético que é muito diferente daquele encontrado nas populações naturais, podendo gerar indivíduos menos adaptados às condições do meio.
Quando introduzidos nos rios, esses peixes podem se cruzar com populações nativas e causar erosão do pool gênico local. Do ponto de vista ecológico, tendem a apresentar menor resistência a doenças, menor habilidade de escapar de predadores, maior dependência de alimentação suplementar e menor eficiência na competição por alimento.
Como é e como deveria ser
Em virtude dos diversos problemas apontados anteriormente, não surpreende que a grande maioria das iniciativas de peixamentos tenha efeitos nulos. No Brasil, durante muitos anos os empreendimentos hidrelétricos eram obrigados a realizar repovoamento nos reservatórios criados a partir da construção das usinas, visando mitigar o efeito dos barramentos. Os dados dessas iniciativas mostram que, apesar do grande investimento empregado, o incremento nas capturas das espécies alvo do repovoamento foi insignificante, como discutido em artigo publicado pelo Prof. Ângelo Agostinho (da Universidade Estadual de Maringá, UEM) e colaboradores, ainda em 2010. Ao invés disso, esses programas contribuíram para a introdução de diversas espécies não nativas nos rios da bacia do Paraná, como corvina e tucunaré.
Considerando os riscos, muitas vezes irreversíveis, envolvidos com peixamentos, essa ação de manejo só deve ser considerada em circunstâncias muito específicas após profunda avaliação técnica. Antes de qualquer iniciativa de peixamento, é preciso que haja uma avaliação cuidadosa do ambiente para se averiguar se a redução nas populações de peixes é o resultado da perda da capacidade de suporte do ambiente. Por exemplo, em muitas regiões, a redução de peixes de interesse para a pesca ocorreu em função do assoreamento dos rios e barramentos dos cursos d’água. Se for o caso, a introdução de novos indivíduos não surtirá efeito, pois a capacidade de suporte já está comprometida. Basta lembrar do exemplo do copo pequeno com água lá do início do texto.
Em algumas situações muito particulares o repovoamento pode até ser considerado, como por exemplo, quando se verifica que as populações se encontram abaixo da capacidade de suporte do ambiente, devido à alta mortalidade relacionada com a sobrepesca ou devido à perda ou degradação de habitats reprodutivos. Ainda nesses casos, as evidências indicam que somente ambientes de menor porte respondem positivamente ao peixamento, não sendo indicados para ambientes amplos, como grandes rios. Além disso, o sucesso do peixamento dependeria da garantia de que os alevinos a serem soltos tem a mesma composição genética dos seus contrapartes no ambiente receptor, o que implica não somente terem matrizes oriundas do ambiente natural, mas também que a produção de alevinos tenha ocorrido em ambiente sem risco de contaminação com outras espécies, patógenos ou parasitas e cujas pressões de mortalidade desses alevinos sejam semelhantes ao ambiente natural, visando evitar a domesticação. Como pode ser visto, são requisitos muito rigorosos, que normalmente não são observados nas iniciativas de repovoamento que vêm ocorrendo.
Alternativas ao peixamento
Um estudo publicado na prestigiosa revista norte-americana Science em 2023 mostrou que, após seis anos de acompanhamento, a adoção de estratégias de restauração do ambiente trouxe resultados positivos para o aumento das populações de peixes, enquanto a simples soltura de novos indivíduos falhou completamente.
Investir no manejo do ecossistema como um todo, de forma a melhorar sua capacidade de suporte, possibilita que as populações se recuperem naturalmente. Essa é, sem dúvida, a alternativa mais segura e com maior potencial de trazer resultados positivos. Para isso, há vários caminhos, como a prevenção de novos impactos e a restauração dos ambientes naturais. Medidas preventivas incluem o fortalecimento da fiscalização contra o desmatamento, a retirada ilegal de água, os incêndios, a poluição e a pesca predatória, além do incentivo à conservação das matas ciliares por meio de programas de pagamento por serviços ambientais. Também são fundamentais a educação ambiental, a criação de legislação que assegure a proteção de áreas úmidas, rios e afluentes, bem como a adoção de boas práticas agrícolas que reduzam o assoreamento e a lixiviação de poluentes. Paralelamente, é essencial recuperar áreas degradadas por meio do reflorestamento das matas ciliares, da restauração dos cursos d’água com ações como o desassoreamento e da remoção de barramentos que impedem o fluxo natural dos rios, medidas que já têm mostrado resultados positivos em diversas regiões, como nos Estados Unidos.
Concluindo…
Os peixamentos costumam surgir como resposta à necessidade de recuperar populações de peixes. É uma ação que tem grande apelo popular e costuma ser destaque na mídia. Entretanto, como vimos ao longo desse texto, essa boa intenção contrasta com os inúmeros riscos e impactos negativos, muitas vezes irreversíveis, que a prática pode causar. Por isso, quando realizada sem justificativas técnicas sólidas e sem os devidos cuidados, trata-se de uma medida que deve ser desestimulada e combatida.
Ao invés de soluções imediatistas e infrutíferas, a melhor alternativa para recuperar os estoques pesqueiros é o investimento em ações de longo prazo que contribuem para a conservação e restauração do ecossistema, como a criação de áreas protegidas livres de impactos que abranjam grandes trechos de rios, a recuperação de matas ciliares e restauração do habitat. Em outras palavras, ao invés de soltar peixes, plante árvores.
Confira quem são os autores do artigo
Fabrício Barreto Teresa – Professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e coordenador da atividade de Turismo e Pesca do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA e pesquisador associado ao PPBio Araguaia.
Carla Vitória Alves Helou Soares – Bolsista do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA.
Emilly Layne Martins do Nascimento – Bióloga, Doutoranda doPrograma de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Felipe Esteves Pinto – Biólogo, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Jhonatan Silva Lima – Engenheiro de Pesca, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Kathleen Mahra da Silva Alcântara Castro – Bióloga, Bolsista do Programa “Araguaia Vivo 2030” da TWRA.
Paulo Vitor Santos Rabelo – Biólogo, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Ecologia da Universidade de Brasília (UnB)
Victor Yuri Da Silva Moreira – Biólogo, Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Recursos Naturais do Cerrado da Universidade Estadual de Goiás (UEG)
Wagner Martins Santana Sampaio – Doutor em Biologia Celular e Estrutural, Coordenador de Biodiversidade do Instituto de Desenvolvimento Econômico e Socioambiental e Responsável Técnico do Projeto Paranaíba Vivo
Wellington Adriano Moreira Peres – Biólogo, Doutor em Genética Evolutiva e Biologia Molecular, Analista Ambiental do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e Chefe da Área de Proteção Ambiental Meandros do Araguaia, ICMBio
