Réquiem para o engenheiro Arnaldo, cunhado de Demóstenes Torres, que morreu de Covid-19

07 abril 2020 às 10h28

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Foi bom que nossas vidas tenham se cruzado — viva eu dez vidas e talvez a sorte de um outro encontro não ocorra novamente no cara ou coroa vital
Marcelo Franco
Conheci Demóstenes Torres, seu irmão Benedito, sua irmã Lindalva Torres e seu cunhado Arnaldo Barbosa Lima há, sei lá, uns vinte e cinco anos. Todos se integraram à minha vida — lealdade é a palavra que me vem à mente.
Havia reuniões, havia festas e havia planos, isso antes de eu me trancar em casa. Éramos ruidosos, crentes num futuro qualquer que nos justificaria aquele ruído todo. Não o Arnaldo. Ele era, por certo, leal, mas era, sobretudo, discreto e alegre. “Alegre” costuma ser um daqueles adjetivos com que rotulamos pessoas quando não temos muito a dizer. Pois sobre o nosso Arnaldo temos muito, muito a dizer: a dita lealdade, a bela família que criou, a honradez com que tocou a vida — mas era realmente alegre, o homem, uma alegria de riso baixo e nunca ostensiva ou ofensiva (sim, há alegrias que ofendem).

A gente chegava amuado e sua presença logo nos contagiava, distraía-nos do ruído que então eu acreditava ser uma forma de vida. Fazia festas — à sua maneira — quando me via, preocupa-se, queria saber como o “Marcelinho” estava tocando a vida, notava pequenas preocupações e dúvidas que eu tentava disfarçar. Eu ia ao ruído, aos planos futuros, mas voltava para a sua mesa, aquela tranquilidade constante funcionando como um magneto. Hoje sei: mil vezes a tranquilidade, nunca o ruído — e sei também: Deus, quando o via, certamente pensava algo como “Aquele está em paz, me compreendeu”, e passava a seguir a atividades mais urgentes.
Fará falta, o Arnaldo. Foi-se hoje de Covid-19, e a mim, que tenho como sagrado o dever de acompanhar os amigos à última morada, só me resta escrever este triste texto. Foi bom, Arnaldo, que nossas vidas tenham se cruzado num momento qualquer — viva eu dez vidas e talvez a sorte de um outro encontro assim não ocorra novamente no cara ou coroa vital. Requiescat in pace.
Poema de Emily Dickinson
Dizem, “com o tempo se esquece”,
Mas isto não é verdade,
Que a dor real endurece,
Como os músculos com a idade.
O tempo é o teste da dor,
Mas não é o seu remédio —
Prove-o e, se provado for,
É que não houve moléstia.