Netflix ganha um tema para série, a vida do advogado Djalma Rezende

02 janeiro 2023 às 19h55

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Demóstenes Torres
Especial para o Jornal Opção
Djalma Rezende, um dos maiores nomes da advocacia agrária na América Latina, trazia já no batismo o que tinha de melhor, a alma. Que boa alma esteve à disposição da Humanidade até um câncer o levar na noite deste domingo que iniciou 2023! A doença não o derrotou, pois se a alma cedia a todos quanto dele precisassem, a fibra de que era composto não se dobrava, inflexível na retidão. Para rememorar apenas os recentemente chamados por Deus, não estive em estádio testemunhando jogos do Pelé, voltei de Roma sem ver missa com o Papa Bento XVI, mas fui amigo do Djalma Rezende. Sete a um pra mim.
O ditado popular veta discussão sobre futebol e religião, porém Pelé e Bento XVI, adorados no mundo inteiro, transcendiam o esporte e o cristianismo. Djalma provava-se por dentro de ambos os assuntos e transcendia amizade ao debatê-los, como a qualquer outro tema. Estava sempre inteirado de tudo. O papo agradabilíssimo transcendia as pautas. Ele próprio daria uma série da Netflix, “O carvoeiro que gostava de livros”. Ou “O advogado justo com as pessoas”. Ainda “O amigo que toda pessoa deveria ganhar a oportunidade de ter para ser feliz”. A grandeza de Djalma não caberia numa biblioteca, apesar de a dele ser imensa, muito menos num título de atração de streaming.
Ficariam ótimos os filmes para a juventude maratonar como curso preparatório de vitórias, sem importar de onde veio, como está, qual o tamanho de sua dificuldade e quão intransponível é a barreira à sua frente ou o fosso à sua volta. Desnecessária a ficção: Djalma passou por tudo isso e ria de tudo isso e muito mais. O roteirista não precisa criar, basta narrar os passos de Djalma desde a infância paupérrima no Sudoeste goiano até a glória de ser um profissional no topo – como nos casos de Pelé e Bento XVI, não importa o ofício, ele chegaria à perfeição da Capela Sistina. E nela ficaria. E a transcenderia.

Djalma exerceu duas atividades cujos praticantes são chamados por aí de doutores, a Engenharia e a Advocacia. Sobressaiu-se em ambas, todavia, seu PhD mesmo era em generosidade. Talvez pelo passado de sofrimento, Djalma tomava as dores de quantos reclamassem ajuda. Seguia à risca o mandamento do Cristo em Mateus, o que doava com a esquerda, a mão direita não via. Jamais propagava suas obras sociais. Os próprios beneficiados sequer sabiam quem era aquele rapaz de barba a servi-los. O Jesus que parece ter moldado pessoalmente os pés de Pelé, de tão perfeitos, abençoava Djalma também de modo individual. Tudo que meu amigo tocava se transformava em milagre da multiplicação – foi assim que Deus o tocou para a caridade. Era assim que Djalma tocava em frente tantos projetos.
O sucesso como engenheiro no Triângulo Mineiro não o satisfez. Queria mais. Não desejava nada acima do merecimento, apenas ser o Nº 1. Optou pelo Direito não para possuir mais uma carteirinha expedida pela OAB, mas para ser “O” advogado. Emplacou. Em sua área predileta, a agrária, alcançou e permaneceu no cume. Foi Rei, igual a Pelé. A fumaça, não a do carvão ou a do Vaticano, subiu branca para o Direito Agrário proclamar: Habemus Papam. Djalma se tornou o sumo pontífice da legalização de terras graças à perseverança que o acompanhava desde menino. Aprendia com as surras duríssimas aplicadas pelo pai e com a proteção recebida da mãe, suficiente para que se dedicasse à leitura, sua diversão predileta. Transformou em energia o carvão que aspirava ao carregar.
Neste milênio, tornou-se notícia. Casou-se? Sai nas TVs. Adoeceu? Está nos sites. Trocou de carro? Blogs dão cor e preço. Em 2017, mesmo acometido pelo câncer que o faria ser internado, figurou entre os primeiros colocados para governador de Goiás. Um dos levantamentos, realizado por instituto de credibilidade nacional, o Paraná Pesquisas, apontou Djalma com 6%, um empate generalizado em segundo lugar, dadas a distância para a eleição do ano seguinte e a margem de erro. Ainda assim, não se sentiu tentado à terceira ponta dos itens indiscutíveis – além do futebol e da religião, a política. Preferiu conservar o respeito e a convivência com integrantes de todos os partidos.
Quem abre o site de seu belo escritório nota, junto com a fachada de extremo bom gosto, a aparição de carro de luxo. Um dia me explicou por que gostava de ostentação: acabou excluído de uma causa grande porque foi de carro visitar o cliente e o outro advogado, de avião. Concluiu sorrindo, com aquele jeito todo seu de sorrir de corpo inteiro, a alegria vinda de dentro:
“Pô, Demóstenes, perdi para um Sêneca”, referência ao famoso pé-de-boi dos ares, badulaque diante de sua frota.
Djalma comprou um avião com design e decoração assinados pela Ferrari. Convidou-me para a viagem inaugural fora do Brasil. Fomos a Buenos Aires e lá aconteceu a surpresa. Naquela época, cartão de crédito deveria ser desbloqueado no Brasil antes de ser usado no exterior. Djalma se esquecera dessa exigência. Moral da história: tive que pagar todas as contas do mestre, prazenteiramente. Ele que era muito mais rico do que eu. E não gostava que ninguém enfiasse a mão no bolso perto dele.
Vivemos juntos diversos scripts típicos da Netflix, principalmente comédia, e abrilhanta biografias ter estado com Djalma. Há alguns anos, Djalma foi à Europa e voltou com uma tremenda infecção alimentar. Só melhorou quando foi transferido para São Paulo. Liguei para ele de um camarote do Carnaval de Salvador e contei-lhe uma história que muito me divertiu e a ele muito mais. Um então deputado federal goiano gritou apoplético:
“Lá vem o Bel! Lá vem o Bel! Lá vem o Bel”, berrava a plenos pulmões. E aumentou o volume quando o sujeito encarapitado no trio-elétrico acenou para a multidão em nosso rumo: “Ele me deu um ciao”.
Na minha ingenuidade das personagens baianas carnavalescas, perguntei-lhe:
“Que Bel, o Graham Bell?”
Ainda bem que o músico Bell Marques não sabe que em sua plateia havia um profundo desconhecedor. Já o Djalma nunca se esqueceu dessa história e toda vez que nos encontrávamos, logo perguntava:
“E o Graham Bell?”
Caíamos na risada.
Outro episódio também aconteceu em sua ausência, com ele de vítima e protagonizada por uma senhora do que chamaríamos de high society, se tal alta sociedade houvesse em Goiás. Numa roda, sem ter mais o que dizer nem de quem falar, a tal madame nos contou que o Djalma lavava dinheiro. Minha mulher, fã incondicional dele, quase saiu no braço com a petulante. A inveja da gentalha não atingia nem o Chaves, o mexicano, ia afetar o Djalma, o mineirense?
Tudo o que conquistava era com trabalho. Como profissional, se notabilizou por ser ultradedicado. Certa ocasião, ganhou para seus clientes 70 mil cabeças de gado além do previsto. Como? Lendo uma certidão num verso de página, onde o oficial de justiça assegurava a existência do imenso rebalho. Convenceu juridicamente a intrépida ministra Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça. E os animais não somente existiam como estavam na gleba apontada pelo oficial. Djalma não recebeu 1 centavo a mais de honorários por essa proeza. Sempre digo a todo advogado que atua comigo:
“Siga o exemplo do Djalma”.
Pode até ser que você não encontre 70 mil cabeças num pasto, mas ao menos a sua não vai rolar.
Passei a noite de ontem e a manhã de hoje imaginando o que dizer do Djalma. Eram tantos os fatos, tantos os feitos, e me sentia sem palavras. Comecei a digitar e jorraram essas linhas, fartas, porém nada diante do homenageado. Tentei ser minimamente generoso com ele, o que ele foi o máximo com quantos dele se aproximavam. Doações inúmeras para pessoas pobres, defesa gratuita de quem o procurava sem condições de pagar, luta incansável por seus clientes. Também batalhou contra a doença com todas as suas forças, juntamente com sua esposa, Priscila. Era justo e não se cansou de ser bom. Advogados ou não, recomendo: sigam o exemplo do Djalma e o mundo, o seu e o dos demais, será um lugar bem melhor.
Demóstenes Torres é advogado. Foi procurador-geral de justiça do Ministério Público de Goiás e senador.