Eurípedes Furtuoso passou parte da infância ouvindo um sapateiro tocar saxofone na vizinhança, em Araguari (MG). Em 1961, aos 12 anos, se encheu de coragem, foi até sua oficina e pediu-lhe que o ensinasse a arte. O oficial (àquela época, profissionais em ofícios como o seu eram assim chamados) aceitou, mas com uma condição: que o menino o ajudasse com os calçados. Trato feito.

Resumindo sua história, 53 anos depois, ele morreu tendo realizado três grandes sonhos e deixando um mal-entendido para trás.

Os sonhos de Eurípedes Furtuoso

1 – ser policial militar (passou no concurso da PM-GO em 1970);

2 – continuar crescendo a vida inteira na música (aprendeu com o sapateiro, ensinou a milhares de alunos, apresentou-se em shows no país todo);

3 – que seus descendentes também tivessem as duas vocações (seus três filhos, Marcos, Márcio e Marcelo, viraram policiais e saxofonistas).

O mal-entendido ocorreu em 2012, dois anos antes de o câncer de pulmão levar Eurípedes, famoso como Major Furtuoso – sim, ele era oficial também nos quartéis.

Marcelo, seu caçula, estava no interior de São Paulo quando foi abordado por policiais rodoviários. Acharam com ele remédio e 17 balas no carregador da arma.

Mesmo a divisa do Brasil com o Paraguai estando a 1.500 km de distância, os patrulheiros deduziram que ele tivesse comprado a munição e o medicamento do lado lá de lá da fronteira. Militar músico é músico sem que isso o impeça de ser militar. E militar pode andar armado. Não consta que seja obrigado a andar com nota fiscal para que se inverta o ônus da prova e tenha de se desincumbir da origem da munição.

Marcelo chegou a ser condenado e perder o fruto de sua ascensão, que começou no concurso aos 18 anos incompletos até atingir o mesmo posto do pai. Seu grande orgulho é que o chamem de Major Furtuoso, como Eurípedes. Esse nome não ficaria manchado. Pois não mais vai perder o cargo, nem o posto, nem nada.

Demóstenes Torres e Caio Alcântara provam que a Justiça pode até tardar, mas não falha | Foto: Divulgação

Major Furtuoso é Major Virtuoso, diz Demóstenes

“Ele não merecia isso [enfrentar acusação na Justiça]. Major Furtuoso deveria se chamar Major Virtuoso”, diz o advogado Demóstenes Torres.

Qual Major Furtuoso? “O pai e o filho”, responde o ex-senador, que, ao lado de seu sócio Caio Alcântara, defendeu Marcelo no Superior Tribunal de Justiça.

Na quarta-feira, 28 de maio, o ministro Otávio de Almeida Toledo, convocado no STJ, absolveu Marcelo, que vai continuar major, vai permanecer saxofonista e vai manter intocado o nome da família.

Segundo Caio, o “Ministério Público não estabeleceu – e nem conseguiria – de que forma o agravante teria ingressado com as munições em território nacional, pois o delito se consuma quando ocorre a entrada no Brasil. Repetimos: o major foi abordado a 1.500 quilômetros da fronteira”.

“Major Furtuoso, o pai, foi meu amigo durante décadas e sou seu fã até hoje, porque gosto de música de qualidade e ele era um músico de altíssimo nível, com esplêndido repertório”, elogia Demóstenes. “Nem ele nem o filho, que também é ótimo saxofonista e meu amigo, merecem qualquer reparo em suas biografias, pois são honestos e ciosos com seu público e com a coisa pública.”

Eurípedes começou a lhe dar aulas quando Marcelo tinha 5 anos. Aos 7, estreou no palco ao lado do pai no tradicional Baco Restaurante, no Setor Oeste, em Goiânia. Já na primeira vez ganhou gorjetas e não parou mais, nem de tocar, nem de agradar, nem de estudar.

Aos 12 anos, mesma idade em que o pai deu o pontapé inicial na sapataria, entrou na pré-graduação em música na Universidade Federal de Goiás, onde ficou até os 24.

Márcio, o filho do meio, morreu em 2002. Marcos, o primogênito, é tenente, trabalha num colégio militar e se apresenta com seu sax.

Major Furtuoso, o pai, teve uma “filha”, a banda PM Show, fundada em 1979 e até hoje na ativa. “Enquanto houver um solo bem feito no sax haverá o Major Furtuoso na memória”, sentencia Demóstenes Torres. Qual dos dois? “O pai e o filho”. (Nilson Gomes-Carneiro)