A história do suicídio de um estudante da PUC que morava na Casa de Estudantes Universitários

10 agosto 2015 às 18h32
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Opinião
Entre a CEU e o inferno
Com problemas de saúde e financeiros, e sem apoio da Pontifícia Universidade Católica de Goiás, o Calixto Tadeu Silva, 23 anos, estudante de Ciências Aeronáuticas, optou pelo suicídio
Wagner Souza
Era um tarde de domingo coberta pela sensação de sentir-se só. Tudo parecia calmo no cenário fúnebre que compunha minha passagem pela pacata cidade de São Miguel do Araguaia, localizada na região noroeste do Estado de Goiás. Passeava pelo cemitério da cidade, ouvindo histórias macabras sobre as ocorrências que resultaram nas sepultaras deste lugar indesejável, sem saber que no mesmo instante meu companheiro de quarto ceusiano planejava seu último voo, atirando-se do décimo sexto andar de um edifício em construção. Um dos episódios narrados relatava a forma como um dos sepultados no mesmo cemitério havia cometido suicídio. Aquilo me fez pensar na ousadia de se alcançar a finitude humana “antecipadamente” por uma ação voluntária e de forma deliberada.
Há mais de dois anos convivo com diferentes personalidades em uma CEU (Casa de Estudantes Universitários), lugar em que vencer a si mesmo é meramente o principal objetivo para sobreviver em meio ao caos provocado pelos conflitos. Tais conflitos são encarados de maneira muito peculiar. Alguns disfarçam, outros os escondem e, ainda, existem aqueles que perdem as estribeiras, as rédeas da situação. Acredito veementemente no aprendizado, na elaboração do conhecimento pela própria vida, oriundo das experiências, desde que se estabeleça uma relação de busca e transformação interior por meio delas. Quando essa relação não é permitida pelo indivíduo as experiências simplesmente passam por ele sem deixar nada de proveitoso, ou, na pior das hipóteses, feridas que talvez nunca sejam curadas.
Quando ingressei na Associação de Moradores da CEU II, vinculada a Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC/GO), a casa tinha uma organização política estável e o número máximo de moradores era ocupado dentro do seu limite. Atualmente a organização de controle das funções está dissolvida e o número de moradores reduziu drasticamente para menos da metade. A maioria saiu voluntariamente, optando por custear o aluguel sem sofrer às pressões que se vive num ambiente coletivo pela obrigação diária de tolerar o outro em suas falhas mais pulsantes. Outros sucumbiram ao fato de se sentirem sós em meio a uma multidão de desconhecidos, pois, mais que nos esforcemos, na hostilidade de uma CEU, nunca será possível derrubar todas as máscaras de “colegas adversários”. Ainda tem aqueles que saem porque concluíram seus respectivos cursos e, também, há os que se perdem em si mesmos e tomam atitudes extremas.
Calixto Tadeu Silva, 23 anos, estudante de Ciências Aeronáuticas, originário do interior de Minas Gerais. Um jovem sonhador que aceitou o desafio de voar livremente pela vida e superar os seus próprios limites. Calixto foi bolsista integral Prouni, logo, isento das taxas de matrícula e mensalidades pagas pelo repasse governamental à referida instituição de ensino superior privada ligada à “generosa” Igreja Católica. No entanto, o seu curso especificamente necessita de horas de voo como complemento prático indispensável à sua conclusão. Conseguiu heroicamente sem ajuda do governo e nem da “generosa Universidade Católica” quitar cem horas de voo lhe restando apenas mais cinquenta horas. Mas um detalhe o distanciava do sonho de voar mais alto do que poderia. Como a família de Calixto, assim como quase a de todos os moradores, não tinha condições de arcar com essa despesa extra que a bolsa não cobria, foi necessário pedir empréstimo para os solidários bancos que querem somente o bem maior dos estudantes de baixa renda, ficando assim, dependente dos juros altos dessas instituições financeiras.
Convivíamos em quatro em um único quarto e, Calixto, que detestava o seu nome por sinal, apresentava dificuldade em desenvolver relações sociais favoráveis a formação de raízes seguras em solo de gente estranha. Então, se limitava às relações dentro da casa, acreditando ingenuamente que aquele ambiente hostil, dominado por abutres carniceiros, iria o acolher em algum momento. Mas o que Calixto não sabia era que os abutres ceusianos têm o costume de não esperar a alma doente de suas vítimas apodrecer e que começam a devorá-la ainda agonizante. Calixto percebeu que corria perigo em meio a corja de farsantes sem sonhos e envoltos em seus gestos egoístas, por isso foi pedir socorro na instituição de ensino que os abutres ceusianos diziam ser a mais solidária de todas. Nas duas tentativas de conseguir um acompanhamento psicológico que diziam ser um direito seu, foi colocado em terceiro plano na ordem de relações prioritárias e acabou desistindo. Disse-me, no segundo retorno, de sua frustrante busca por ajuda, que ouviu estridentemente de um funcionário puquiano que não tinham tempo para atendê-lo naquele momento porque o Fies e o Prouni estavam sendo a prioridade durante aquele período de entrevistas.
Só restava para Calixto acreditar no que ele mais temia: o medo de ter medo de não conseguir chegar até onde sua esperança, produzida pela desilusão, o permitiu sonhar. Havia perdido suas raízes culturais, sua chama de entusiasmo havia cessado; junto com o vento que lhe dava o fôlego suficiente para continuar lutando. Calixto não sabia mais quem era Calixto e não se definia na busca de saber quem era aquele que não mais conhecia. O mundo que o rejeitava não fazia mais sentido em canto nenhum de suas emoções. Seu olhar de ânimo era disfarçado pela incerteza dos apelos de sua solidão desesperadora. Ninguém poderia mais compreender. Os sonhos se desmantelaram. Um riso asfixiado e gritos de uma dor intensa neutralizaram-no. As crises epiléticas assustavam seus dias como sintomas da morte iminente.
Os abutres ceusianos, a generosa instituição de ensino superior católica, os bancos preocupados com estudantes de baixa renda, os colegas adversários, todos… Fatores que mergulharam Calixto na desilusão que o fez se perder em si mesmo e não mais voltar, buscando a realização de um sonho perigoso e ousado em um único voo sem volta a um mundo que não tivesse mais que retornar. No mesmo instante que perambulava pelo cemitério de São Miguel do Araguaia toda a articulação para o fim era posta em prática. Coincidência temporal horária como sinônimo de uma espiritualidade universal conectada aos fatos ou mero ajuste provocado pelas condições de desalinhamento da própria existência? Um questionamento obscuro que nos levará ao triste dilema de ter que escolher entre uma CEU manchada por ações egoístas pecaminosas ou um inferno que ela proporciona como consequência dessa rejeição celestial.
Wagner Souza é estudante de Pedagogia na Pontifícia Universidade Católica de Goiás.