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É comum dizerem que o Brasil é um país arruinado pela colonização europeia, contudo o legado português é mais um “complexo de vira-lata” do que propriamente o fator corruptivo
[caption id="attachment_25026" align="alignleft" width="620"] Os portugueses colonizaram o Brasil, mas não foram os inventores da corrupção, pois esta existe no mundo todo | Pintura de Oscar Pereira da Silva[/caption]
Marcos Nunes Carreiro
O Brasil é o país mais corrupto do mundo. A frase é comum e costumeira na boca de muitos pelas ruas de qualquer Estado brasileiro, principalmente após alguma manchete de jornal apontando para um novo escândalo de corrupção. O Brasil é, de fato, o país mais corrupto do mundo? Não, mas, antes de comprovar tal questão, é preciso explicar as razões que levam os brasileiros a acreditarem morar na mais desafortunada nação do mundo.
Ressuscitemos Nelson Rodrigues, o escritor brasileiro que eternizou a expressão “complexo de vira-latas”, utilizando o adjetivo canino para dar nome à tradição autodepreciativa brasileira. Trata-se por “complexo de vira-latas a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores”. Isso explica o porquê do exagero em relação à corrupção.
Porém, Nelson Rodrigues apenas deu nome à questão, não a inventou. Há quem diga que o tal complexo é tão antigo quanto o próprio Brasil. De onde vem? Aurélio Schommer, escritor e pesquisador gaúcho radicado em Salvador (BA), em seu livro “História do Brasil Vira-Lata”, resolve a questão da seguinte maneira:
“A Europa do século XV vivia o Renascimento, alvorecer científico e cultural de vastas proporções, contudo, a maior parte da população do continente terminaria o século analfabeta e presa a um sistema de castas em que a possível ascensão social ‘dependia muito pouco da vontade própria’, e ‘não se via, pouco se esperava, mas se desejava’. […] Em Portugal, os comerciantes não nobres contavam-se nos dedos e eram em grande parte judeus ou italianos, explorando o pequeno fluxo comercial atlântico, inicialmente dirigido ao norte da Europa, depois estendido às ilhas (Açores, Canárias, Madeira). Agrário e feudal, o reino luso era pobre e socialmente estanque.
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Aurélio Schommer pesquisa a origem da autodepreciação que Nelson Rodrigues sintetizou no “complexo de vira-latas”[/caption]
“Quanto à identidade, é visigótica e sueva (dois povos germânicos cristianizados), mas é também nativa, dos celtas, galegos e lusitanos, tribos dominadas pelos romanos no século II a.C. […] Enquanto os povos germânicos do oeste ibérico dão origem a Portugal, com uma identidade própria e mestiça; os francos assumem a identidade gaulesa, sendo a França a fusão de francos, gauleses, bretões e também visigodos; enquanto os alamanos, frísios, saxões, turíngios e catos mantêm a germanidade em maior grau na protoalemanha.
“O Ocidente, criado pelos gregos e romanos, é recriado pelos povos germânicos, mais ou menos miscigenados com nativos e remanescentes itálicos. […] Assim, a Europa que parte para conquistar o mundo no século XV é uma criação latino-germânica, da qual Portugal é a parte mais miscigenada e periférica. Não se constituía, porém, tal diferenciação, num sentimento de inferioridade dos lusos em relação aos nórdicos, mais ‘puros’”. Apenas após a Revolução Industrial, que desenvolveu muito mais a Europa do norte, é que veio à tona certa depressão por parte de portugueses e espanhóis. “Outrora porta-estandartes do Ocidente, os portugueses transformaram-se em vira-latas da Europa, não por negarem as próprias origens, mas por se apegarem a elas.”
Dessa forma, se “Portugal e Brasil colocam-se como vira-latas diante da atual parte mais vistosa do Ocidente, não é por coincidência, mas por mútua identidade, compartilhada e negada por ambos”. Em outras palavras, a tradição autodepreciativa brasileira seria, então, herança dos colonizadores portugueses. Assim, como a própria corrupção.
Não é raro ver historiadores remetendo à permissividade da coroa portuguesa, à época da colonização, o hábito da corrupção brasileira. E, de fato, há certa razão nisso, visto que, quando deu início à colonização, a coroa não queria abrir mão do Brasil, todavia não estava disposta a viver no novo local. Então, delegou a ocupação das terras aos nobres portugueses, que tinham a missão de organizar as instituições na colônia. Porém, para convencer um fidalgo a se mudar para o então inóspito paraíso, foram necessários “argumentos”. Surgiram as vantagens. A coroa permitia que os nobres trabalhassem sem vigilância. Tal fato criou a cultura de que o poder se confunde à pessoa. Cultura que permanece nos dias atuais.
Entretanto, Portugal apenas facilitou a criação de uma cultura corruptiva, não a idealizou, tampouco a difundiu pelo mundo, visto que não é possível alçar os portugueses à alcunha de “arquitetos da corrupção humana”. A questão é mais ampla.
Ao filósofo suíço Jean-Jacques Rousseau atribui-se a noção de que o homem nasce bom e a sociedade o corrompe. Porém, Rousseau idealiza noções mais interessantes em seu “Contrato Social”. Ele diz:
“Toda ação livre tem duas causas, que concorrem para produzi-la: uma moral, a saber, a vontade que determina o ato; a outra, física, isto é, o poder que a executa”. Simplificando: quando uma pessoa caminha na direção de um objeto, é necessário primeiro que a pessoa queira ir em direção ao local; depois, que seus pés a levem. O filósofo teoriza a questão para explicar as diferenças entre os poderes Legislativo — a vontade — e Executivo — a força, mas é possível exportar o conceito.
Ninguém obriga ninguém a se corromper. Nasce a vontade e, internamente, também a força para executar o desejo. Logo, se alguém é parado em uma blitz e, para se livrar da multa, suborna o policial, nasceu nele tanto a vontade quanto a força da ação. Ou seja, sua corrupção é tanto moral quanto física. O mesmo vale para o policial, caso aceite o suborno. Se uma pessoa está com pressa e, para suprir sua necessidade de agilizar a agenda, se rende ao desejo de furar uma fila de banco, nasceu nela o desejo e a força para executar a corrupção.
Dessa forma, é possível dizer que a corrupção não vem de um país, ou cultura, mas é algo interno. Social? Talvez sim. Natural, genético? Pouco provável. Mas, se há certa dificuldade em se determinar a origem da corrupção, é mais simples apontar os meios para combatê-la.
A experiência de outros países
O dicionário Houaiss de Língua Portuguesa define a palavra corrupção como: “modificação, adulteração das características originais de algo”; ou “depravação de hábitos, costumes, devassidão”; ou “uso de meios ilegais para apropriar-se de algo em benefício próprio”. Dessa forma, abrange-se corrupção do desvio milionário de verbas públicas ao furo da fila no banco; da transposição de um cruzamento cujo semáforo está fechado às costuras ilícitas para se alcançar determinado cargo, público ou privado. Ou seja, há as pequenas e grandes corrupções. Contudo, é costumeiro notar apenas as grandes, sobretudo as que envolvem dinheiro público. E isso ocorre em diversos países. Na década de 1990, duas ações se tornaram exemplo no combate à corrupção no mundo. Analisemos o caso italiano: No início dos anos 1990, a Itália viu duas grandes operações policiais que envolveram a Justiça e uma boa parte da classe política: a Força Tarefa Antimáfia e a Operação Mãos Limpas. A primeira teve por objetivo investigar e combater a Camorra, máfia que agia nas cidades de Palermo e Nápoles; a segunda intentou lutar contra aquilo que, no Brasil, se conhece por “crimes de colarinho branco”, envolvendo “lavagem de dinheiro. Do ponto de vista de comparação, a mais importante foi a Operação Mãos Limpas, liderada pelo juiz Antonio Di Pietro. A ação foi iniciada com a denúncia de um pequeno empresário da área de limpeza que prestava serviços à cidade de Milão. Cansado de pagar propina para realizar os serviços no asilo da cidade, resolveu denunciar a prática, então comum. Fez um acordo com Antonio Di Pietro, que, à época, era procurador de Justiça. Desse contato, foi armada uma operação que envolveu gravadores, cédulas marcadas e, obviamente, policiais. A confirmação das práticas de corrupção atordoou a Itália, visto que a propina cobrada dos empresários tinha por objetivo financiar as campanhas políticas do Partido da Democracia Cristã e do Partido Socialista, que há anos ocupavam o poder no país. Desde então, a Itália vivenciou um grande número de denúncias, centenas de pessoas presas, sobretudo, empresários corruptos, funcionários públicos e políticos. Mas o combate à corrupção não é uma questão meramente policial. Na América Latina, o Chile demonstrou isso ao tomar medidas preventivas, como: a redução de 80% no número de cargos comissionados e a implantação de mudanças no sistema de financiamento de campanhas eleitorais. A primeira medida teve por objetivo evitar a grande quantidade de pessoas então contratadas para exercer atividades comissionadas nas várias esferas de governo — federal, estadual e municipal —, uma vez que, segundo estudos, essas pessoas tendem a ser mais propensas à corrupção, visto que configuram funcionários “não estáveis”, geralmente admitidos por amizade, apadrinhamento ou outro tipo de relação pessoal com gestores públicos. Outra medida foi o uso maciço da internet para divulgar os editais de leilões e licitações, eventos que, em geral, envolvem grande quantidade de dinheiro, logo, muito visados em atos de corrupção, como o fornecimento de informações privilegiadas. Com a divulgação púbica dos editais, o Chile reduziu as possibilidades de fraude em compras públicas. No Brasil, os escândalos têm sido recorrentes. Por quê? Segundo a presidente Dilma Rousseff (PT), devido à maior liberdade de investigação, uma vez que os órgãos de investigação no Brasil pouco voltavam seus tentáculos para o serviço público. De fato, “inegavelmente, o Brasil tem avançado nesse campo”, como bem diz o conselheiro federal da Ordem dos Advogados no Brasil (OAB) Miguel Cançado. [caption id="attachment_25028" align="alignleft" width="300"]
Combate policial não é o único meio de reduzir os índices de corrupção
O que é necessário fazer para chegar ao nível de Chile e Uruguai? Para o conselheiro federal da OAB Miguel Cançado, “não há outra opinião: para combater de modo mais eficaz a corrupção é necessário melhorar a efetividade das punições”. O que significa? “O Poder Judiciário precisa conseguir responder a tempo e a hora as demandas que são levadas a ele”, responde. Isso passaria, então, pela modernização da legislação penal, que é de 1940 — foi criado pelo decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. “Falando conceitualmente, essa medida auxiliaria nessa questão. É claro, que sem tirar o direito ao contraditório e à ampla defesa, que são fundamentais e fazem parte de princípios que formam o Estado democrático de direito. Mas não tira o fato de que o Poder Judiciário precisa ser efetivo”, aponta. Além disso, para o conselheiro, a imprensa também tem um papel importante na questão, pois “tem a responsabilidade de chamar luzes para o assunto”. Porém, Cançado ressalta: “Extirpar 100% dos desvios de conduta, talvez, seja um sonho. É claro que a prevenção e a repressão a atos de corrupção serão mais aprimoradas, o que é fundamental. Agora, acho que nenhuma sociedade no mundo conseguiu achar esse ponto ideal para extirpar esse tipo de atos. Não sou pessimista, mas é preciso ser realista”. E ele tem razão. Analisado o ranking da Transparência Internacional, é possível ver que, de 0 a 100, o país com mais recursos para combater a corrupção é a Dinamarca, cuja pontuação é 92. Alta, mas não é 100. Da mesma forma, como nenhum país é 100% corrupto. A Coreia do Norte e a Somália, países com pontuação mais baixa entre os 175 analisados, têm 8 pontos. O país latino-americano com pior desempenho é a Venezuela (161ª posição, com 19 pontos). Coalizão contra a corrupção A Transparência Internacional divulga o Índice de Percepção de Corrupção há 20 anos e, no Brasil, conta com a parceria da Coalizão Brasileira contra a Corrupção, a Amarribo, instituição com sede na cidade paulista de Ribeirão Bonito. O objetivo da instituição é justamente achar meios de combate à corrupção. Ao Jornal Opção, o presidente da organização, Leo Torresan, diz que a corrupção é um mal que atinge todo o mundo, seja em maior ou menor grau, mas afirma também que todos têm lutado contra esse problema. Porém, aponta que a prevenção deve ser o foco principal, uma vez que “‘correr atrás do prejuízo’ é muito mais complicado que preveni-lo”. [caption id="attachment_25029" align="alignleft" width="300"]