Resultados do marcador: Especial de 90 anos
Quisera qualquer brasileiro exercer seu ofício com a naturalidade e desembaraço de quem compôs “Samba de uma nota só” e “Samba do Avião”
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Tom Jobim, o gênio da música, faria 90 anos de idade dia 25 de janeiro | Foto: Carlos Mancini[/caption]
Vitor Hugo Goiabinha
Especial para o Opção Cultural
Um certo cantor de voz muito grave, da cena paulistana da década de 1980, costumava interromper suas apresentações e perguntava muito seriamente para sua plateia: “Você conhece Tom Jobim?” Diante dos sorrisos desconcertados pela pergunta repentina, ele insistia: “Você realmente já ouviu Tom Jobim?... É preciso ouvir Tom Jobim”. Qual brasileiro não conhece Tom Jobim?
Jobim é um desses gigantes dos quais é difícil falar algo, dada a responsabilidade, mas é impossível deixar passar em branco a data em que ele completaria 90 anos (25 de janeiro). Seria inútil qualquer homenagem ou tentativa de engrandecer sua formidável obra musical, de forma que gostaríamos apenas de ensaiar, aqui, um mapeamento da sua presença significativa, da sua figura e do seu papel no imaginário da cultura brasileira.
Tom não era apenas o “maestro soberano”, como bem lembrou Chico Buarque em “Paratodos”. Era o Tom da ligação profunda com a poesia de Vinícius de Moraes, de Carlos Drummond de Andrade e de Manuel Bandeira. Era o Tom da literatura, ao ler Guimarães Rosa e trazê-lo para sua música em “Urubu” e “Matita Perê”. Era o Tom da política, ao compor “Sinfonia da Alvorada” para a Brasília de JK. Era o Tom da natureza no clamar, no seu último disco, “salvem as flores, salvem a primavera”, em “Forever Green”. Era o Tom do humor refinado e da simplicidade nas entrevistas que concedia.
Nos idos da década de 1950, quando o samba encontrou-se com o cool-jazz, originando a Bossa Nova, o Brasil viveu uma vanguarda artística que não conhecia. O novo momento político se misturou com uma belle époque das artes — como se referem os franceses. Jovens talentosos, dados à boemia e à vida noturna, com a cabeça em um projeto de procura da identidade cultural nacional, num momento em que a Semana de Arte Moderna de 1922 já havia aberto as portas para experimentação antropofágica e em que Tom herdava Villa-Lobos. Eram momentos de tensão do pós-guerra, das possibilidades democráticas de crescimento sociocultural e político-econômico, da construção da moderna Brasília.
Fatores que ventilavam um esperançoso ar de inserção do país no cenário internacional e que davam ao nacionalismo uma sensação menos tensa comparada ao pesado cenário europeu e mundial. O Brasil aparecia como possibilidade de modernidade e de receptividade e a Bossa Nova era providencial nessa conjuntura. Era um ritmo simpático, leve, beira-mar, mas também da vida noturna, do prazer das conversas ao som do violão, bem próximo da imagem que o país desejava passar para si mesmo e para a cena internacional. Saíamos do nacionalismo-exaltação, às vezes exageradamente orquestrado, de Ari Barroso, para uma versão menos grandiloquente e mais intimista, mais conceitual, mais realista e mais sóbria em seu discurso poético e musical.
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Tom e seus companheiros criaram esse que é um dos estilos musicais populares mais difíceis de interpretar, devido à união de uma cadência rítmica bem específica ao refinamento dos altos e baixos das melodias e a uma harmonia rebuscada (com acordes abertos às sétimas, nonas, décimas-terceiras etc.), mas também receptiva a dissonâncias e experimentações modais. Por um lado, produziram um terreno fértil tanto para o amadurecimento harmônico de nossa música quanto para a recepção de sonoridades externas, por outro, pelo apelo à erudição necessária para o aprofundamento estético, deram esse ar conceitual à música, inexistente nos estilos brasileiros anteriores.
A Bossa Nova cumpriu bem seu papel. Mostrou ao Carnegie Hall e ao mundo que o balanço do samba era inventivo, pois estava atento e aberto tanto às influências impressionistas de Debussy e Ravel quanto às tendências mais inventivas do jazz. E ainda revelava um Brasil e brasileiros extremamente desimpedidos, espaçosos e competentes para unir o gingado africano com as harmonias jazzísticas. Talvez um Brasil que mesmo os brasileiros não conheciam.
Mas Tom, apesar dos muitos clichês músico-biográficos, transcende a Bossa Nova. Ele não apenas elevou nosso patamar de qualidade, mostrando para nós mesmos que nossa música em nada deve a outros gêneros, como passou a figurar ativamente no nosso imaginário cultural.
