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“Fragmentado” e o retorno de M. Night Shyamalan ao cinema de qualidade

Diretor demorou a entender que, depois de atingido certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. Novo filme dá indícios de ser fruto deste entendimento [caption id="attachment_90718" align="alignleft" width="620"] Transtorno Dissociativo de Identidade abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy, que vive Kevin, um criminoso que tem 23 personalidades[/caption] Depois de se engalfinhar com Will e Jaden Smith no fiasco de "Depois da Terra" (2013), já vindo de uma derrota vergonhosa com "A Dama da Água" (2006), choveram críticas e diagnósticos de que M. Night Shyamalan já era (aliás, merece um estudo o fato de os franceses, ao contrário dos americanos, terem continuado a dar suporte às suas obras de forma mais incisiva mesmo durante esse período conturbado). A verdade é que Shyamalan esperneou durante um tempo até descobrir que, depois de atingido certo nível de qualidade no cinema, não dá para ser qualquer coisa. É preciso, no mínimo, atender às expectativas. Daí ele lança esse petardo que é "Fragmentado" (2017), contrariando a torcida adversária. A ideia inicial do filme é bem simples. Inclusive, já a encontramos distribuída por algumas outras obras como "O silêncio dos inocentes" (1991), "A cela" (2000) e "O quarto de Jack"(2015). Um cara vigia três garotas por alguns dias, as sequestra e encarcera em algum lugar isolado, sem contato com o resto da civilização. A missão do telespectador é tentar descobrir o que está acontecendo e acompanhar as tentativas (frustradas ou não) de fuga das reféns. Um pouco de síndrome de estocolmo ali, traumas de infância acolá, enfim. A coisa começa a ficar realmente interessante quando descobrimos, junto com as sequestradas, que o captor é portador de um Transtorno Dissociativo de Identidade (popularmente conhecido como Transtorno de Personalidade Múltipla), o que abre as cortinas para um show de interpretação de James McAvoy. Kevin, o criminoso interpretado por McAvoy, tem nada menos que 23 personalidades (a do moleque de 9 anos, Hedwig, é simplesmente sensacional). Na tela, desfilam um pouco menos, mas encontramos referências a todas elas espalhadas pelo filme. Assim que se dá conta disso, Casey, uma das reclusas, interpretada também de forma magistral por Anya Taylor-Joy (revelada no thriller "A bruxa", de 2015), começa a ousar em um truque psicológico ou outro na tentativa de penetrar na mente do sequestrador. Vale ressaltar, aliás, a excelente cenografia, que transforma todo o ambiente do cativeiro em uma excelente metáfora para essa mente doentia de Kevin. É interessante que, desde o início, percebemos certo tirocínio em Casey. Algo mexe com ela de forma diferente em tudo aquilo (perceba a forma como ela rapidamente aconselha sua amiga Márcia a escapar da primeira investida de Kevin, agora assumido na personalidade "Dennis" – não se preocupe, não vou revelar mais do que isso). Infelizmente, por mais que Casey e sua trupe tentem, tudo leva a crer que nunca será possível saber tudo sobre Kevin/Dennis/Hedwig/Patrícia e todas as outras personalidades. Inclusive, a personagem de Betty Bluckey, Dra. Karen Fletcher, de força dramática um pouco menor, até tenta nos auxiliar nessa dissecação das personalidades. Mas existe sempre uma porta a mais a ser aberta. E de soslaio, indícios de que algo mais brutal está brotando daquela moçoroca de personalidades – como o pôster já avisa, muito possivelmente uma 24a personalidade. Shyamalan, como sempre, entrega uma direção instigante. O uso constante de câmeras subjetivas (as mais hitchcockianas, como os olhares através de buracos de fechadura, frestas de portas e de armários, são sempre as mais prazerosas), ou em planos móveis (os famosos "travellings") conduzem sempre o fio da atenção em meio a diálogos reveladores – em que pese num ritmo um pouco mais lento dessa vez. Mas o grande responsável por jogar o diretor de volta aos holofotes após os desastres de público e crítica que se tornaram as últimas duas ou três de suas grandes produções é o roteiro. Shyamalan levou algo em torno de 10 anos para escrevê-lo, instigado pelos estudos em psicologia que sua esposa vinha levando desde então. Aliás, sabendo disso, torna-se ainda mais interessante que o filme tenha repercutido no público de hoje, uma década depois. Existem algumas falhas básicas, como ter escalado três garotas como vítimas, mas fazer um bom uso narrativo de apenas uma – nossa protagonista. As outras duas são estereotipadas, sem uma base de construção (não sabemos absolutamente nada sobre elas – exceto que são perfeitinhas demais), e mal sabemos seus nomes – algo que sempre indica um futuro não muito promissor na trama. Mas, situando o filme dentro do gênero a que se propõe, nada que não possa ser perdoado. Muita gente ficou perdida com o final do filme. Não é para menos. Existe ali uma referência surpresa a uma de suas outras obras – algo que o diretor fez questão de comentar em sua mais recente visita ao Brasil. Aliás, acostumados que estamos a grandes viradas de enredo ("plot twists"), que se tornaram a marca registrada de Shyamalan (as mais famosas, em "Sexto Sentido" e "A Vila", realmente são de cair da cadeira), o fim desse filme perde um pouco a força ao se escorar apenas nessa "surpresa". Pessoalmente, saí arrepiado. Mas, vá lá, assista e julgue por si. A mensagem que fica é que M. Night Shyamalan está de volta na cena. "Os que sofrem são os mais evoluídos", diz uma das facetas de Kevin. Agradando a público e crítica (leia-se, faturando alto sem perder a qualidade), quando as luzes da sala de projeção se acendem, temos uma certeza: vem mais coisa boa por aí. João Paulo Lopes Tito é advogado e estuda Cinema e Audiovisual na UEG