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Nascido Salomão Borges Filho, em 10 de janeiro de 1952, Lô era o sexto de 11 irmãos
O dia 26 de outubro representa uma festa na música brasileira. Festa para um rei negro já entronizado na dimensão do infinito. Milton Nascimento completa 83 anos, se é que o tempo ainda se aplica a quem vive em outra frequência. Talvez Bituca, como é carinhosamente chamado pelos amigos, nem perceba a data com exatidão, imerso no universo silencioso em que as mentes vão se desligando do mundo racional. Mas cada ano de Milton no plano terreno é motivo de celebração, no Brasil e onde quer que sua voz tenha chegado.

Quando o país descobriu Milton, no palco de um festival em 1967, algo mudou para sempre. A música popular brasileira ganhou novos contornos, e o Brasil ganhou uma nova alma sonora. Bituca trouxe consigo um mundo: os trens de Minas transportando melodias impregnadas do lamento africano, do grito latino pela liberdade, do improviso do jazz, da harmonia da bossa nova e da solenidade barroca das igrejas mineiras. Tudo convivendo num mesmo sopro, numa mesma melodia.
A música de Milton é o Brasil visto de dentro. Uma travessia entre o sagrado e o cotidiano, entre o chão vermelho das Geraes e o infinito das estrelas. Sua voz, aguda, terna e andrógina é um instrumento em si, uma espécie de oráculo sonoro que parece vir de outro plano. Poucos artistas no mundo alcançaram essa comunhão entre o humano e o transcendente.

Milton cantou com todos e para todos. Dividiu a cena com gigantes como: Elis Regina, Gal Costa, Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil, mas seu território musical sempre foi intransponível. É uma geografia própria, de montanhas e nuvens, habitada por irmãos de fé: Fernando Brant, Márcio Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Ronaldo Bastos, Lô Borges e Toninho Horta. Juntos, criaram o Clube da Esquina, um dos momentos mais luminosos da história da MPB, um manifesto poético sobre amizade, liberdade e pertencimento.
Hoje, quando o corpo já se curva ao peso do tempo e da doença, o espírito de Milton continua erguido em cada acorde de Travessia, em cada grito de Maria, Maria, em cada saudade de Cais. Ele se despediu dos palcos em 2022, diante de uma multidão emocionada no Mineirão, como quem encerra um ciclo e retorna à sua montanha interior. Mas o silêncio que se segue à sua voz não é vazio, é ressonância.
Milton Nascimento é a prova de que a música não se mede por notas, mas por presenças. A dele é uma das mais intensas que já habitaram a história do Brasil. Aos 83 anos, Milton Nascimento é memória viva de um país que ainda se descobre no espelho da própria canção.
E enquanto houver alguém que ouça “Canção da América” e sinta vontade de abraçar um amigo, Milton continuará existindo, não apenas como artista, mas como verbo: o verbo sentir.
Sugiro ouvir “Cais” é uma das obras mais simbólicas da estética de Milton. É uma canção que parece nascer do silêncio, um convite à escuta interior. A harmonia se move em ondas suaves, com acordes suspensos e transições inesperadas que sugerem a ideia de partida, travessia e retorno, temas recorrentes em sua obra.
Fique atento! Milton canta como quem medita. O timbre etéreo e o controle do vibrato criam uma sensação de transcendência; há um lirismo quase litúrgico. Observe os acordes abertos e as resoluções sutis, eles não buscam o repouso tonal tradicional, mas um equilíbrio flutuante, que espelha o sentido da palavra “cais”: o lugar entre terra e mar, segurança e viagem. O piano dialoga com o baixo e a bateria em textura mínima, mas profundamente expressiva. Cada nota tem peso emocional.
“Para quem quer se soltar, invento o cais...”
O verso inaugural já define a canção como metáfora da liberdade, do recomeço e do acolhimento. E quando ele canta, parece falar de todos nós: dos que partem, dos que ficam, dos que buscam um porto onde repousar a alma. Porque Milton não canta apenas notas: ele acende luzes. E cada vez que sua voz for ouvida, o Brasil se reencontra consigo mesmo, mais sensível, mais humano, mais inteiro.
Ouça “Cais” e deixe que a música de Milton te devolva o que o tempo não conseguiu levar.
