O país do presidente Donald Trump quer copiar o dos aiatolás do Irã

23 agosto 2025 às 21h00

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Halley Margon
Especial para o Jornal Opção
“Sim, queremos Deus no controle do governo. Queremos que Deus escreva as leis do país. Queremos que Deus controle tudo.” — De um dos novos líderes nacionalistas cristãos norte-americanos em reportagem publicada no “The Atlantic”
I
Se, por um lado, 29% dos adultos americanos se identificam como não religiosos (ateus, agnósticos ou não identificados com qualquer religião específica, um grupo social que teria crescido significativamente nos últimos anos – em 1991 eram apenas 6%), por outro, é cada vez mais evidente que os declaradamente cristãos de todos os matizes e filiações estão se manifestando com estardalhaço crescente e ocupando cada vez mais espaços nas estruturas de poder do país. São militantes empedernidos de uma crença que pretende abolir a separação entre Igreja e Estado e colocar Deus no comando de tudo. “O secularismo puro não satisfaz”, anuncia o padre anglicano Nicky Gumbel na The Atlantic. Para substitui-lo, o que pregam, sem qualquer rubor facial, é nada menos que o fim definitivo daquela tradicional separação. Consequentemente, a instauração do mesmo tipo de regime inaugurado no Irã em 1979 pelo aiatolá Ruhollah Khomeini e agora comandado pelo aiatolá Ali Khamenei. E claramente não estão para brincadeiras.
Eles se autodenominam nacionalistas cristãos e entre suas estrelas ascendentes está um músico chamado Sean Feucht. São dele as palavras da epígrafe desse artigo. Formam parte do estreito repertório de arengas da turnê de comícios e shows que Feucht vem realizando nos Estados Unidos para o exército de recrutados do MAGA (Make America Great Again) – já realizou seus showmícios em todas as 50 capitais dos estados americanos. Num desses eventos, dirigiu-se à plateia encantada dizendo: “Bem, vocês são nacionalistas cristãos. Querem que o reino seja o governo? Sim! Querem que Deus venha e tome o controle do governo? Sim! Querem que os cristãos sejam os únicos? Sim, queremos. Queremos que Deus controle tudo. Queremos que os crentes sejam os que escrevem as leis.” Mesmo já tendo sido parabenizado pessoalmente por Trump pelo “trabalho incrível que estava fazendo em defesa da liberdade religiosa” (sic), participado do “serviço de oração da posse do novo presidente na Catedral Nacional em janeiro” e se apresentado na mesmíssima Casa Branca em abril, mesmo com todas essas credenciais talvez soe para muitos de nós folclórico e eventualmente insignificante, sem importância. Mas dado o panorama estampado à nossa frente, considerá-lo assim seria um erro. Os feucht são multidões e, apesar de talvez não somarem mais que uma minoria, estão ascendendo rapidamente dentro da sociedade que os gestou e no aparato do Estado.
E se Feucht é apenas um personagem minúsculo emergido do anonimato para a fama na esteira do trumpismo, não é esse o caso do atual diretor do OMB (Office of Management and Budget) e sucessor de Elon Musk no DOGE (Department of Government Efficiency) Russell Vought. Tanto quanto Steve Bannon (e Feucht), Vought é um “autodeclarado nacionalista cristão e defensor da incorporação de valores cristãos na governança pública”. É também “fundador do Center for Renewing America, um think-tank que apoia o conceito da América como ‘nação sob Deus’”. Um funcionário de altíssimo nível que vem operando desde bem antes do retorno glorioso do trumpismo.
Toda essa pregação poderia (e deveria) ser somente um desses arroubos delirantes que assomam as almas dos fanáticos religiosos e que eles mesmos tratam de expor como se fosse as mais certeiras das profecias. Fantasias mais bem destinadas aos gabinetes dos psicanalistas ou nos casos mais graves aos consultórios dos psiquiatras para imediatamente serem guardadas no cofrinho do merecido esquecimento. Em qualquer outra época, é o que tratariam de fazer os portadores de uma dose mínima de sensatez. Em qualquer outra, mas não na nossa. Fazer isso agora é que seria insensato e, mais, imprudente – não que deixar de fazê-lo nos coloque em posição menos desvantajosa.
Seria até razoável que numa sociedade tão reificada e amparada numa divindade tão eficaz quanto a mercadoria, o apelo religioso stritu senso cedesse terreno e, até, eventualmente se tornasse ínfimo. Pelo menos em algumas partes do globo isso de fato pode estar acontecendo. Em grande parte da Europa, as religiões tradicionais do Ocidente têm atualmente uma existência apenas residual. E mesmo em países de forte tradição católica como a Espanha e Portugal, elas se manifestam hoje mais na celebração de festas religiosas com caráter cultural (e turístico) que propriamente religioso. Seu efeito normativo é quase nulo. Seu papel de guia moral praticamente inexistente – a não ser quando submetidas à manipulação política da ultradireita.
II
(A reação ao materialismo radicalizado e sem freios, deificado no mundo próspero, traz como consequência não a sua crítica ou o desmascaramento do fetichismo que constitui a sua essência, mas a fuga da realidade na direção de um espiritualismo fundado e alimentado por outras formas de alienação, de estupidificação dos sentidos, de empobrecimento radical da própria espiritualidade – e a adesão incondicional a sistemas de crença religiosa eles próprios ainda mais espiritualmente miseráveis que os das grandes religiões.)
III
Assim, como parte da base eleitoral de Trump deseja copiar o fundamentalismo islâmico e estabelecer nos Estados Unidos um Estado teocrático, também parte do corpus bolsonarista emula a psicologia do seu grande ídolo Donald Trump: se não há lógica comercial alguma a orientar a teatral política tarifária do americano, como reconhecem e reafirmam 10 de cada 10 economistas, tampouco existe alguma estratégia misteriosa por detrás dos auxiliares mais íntimos do ex-presidente e agora réu Jair Bolsonaro, a começar pelo próprio clã. São pura e simplesmente ineptos, primários, como é e sempre foi o chefe – mesmo assim eleito Presidente e tornado mito por sua audiência. Primários, acabrunhadoramente simplórios e às vezes, comprovadamente estúpidos, são capazes de atirar no próprio pé. Mesmo com a assessoria direta e muito bem paga (supõe-se) do nada bobo Steve Bannon, o filho imigrado do mito aparentemente não consegue somar 2 + 2. De modo que cada novo gesto parece ser a consequência inevitável da burrice anterior. Se ainda não se enterraram a si próprios é porque, por um lado sempre há uma parte importante da elite disposta a dar suporte a figuras facilmente manipuláveis e que se coloquem a seu serviço, e por outro, milhões de seres que se identificam com essas imagens espectrais projetadas por desejos obscuros.
IV
Bem no iniciozinho da terceira parte de O Homem Moisés e a Religião Monoteísta, Freud parece se lamentar quando reconhece que vivia “numa época particularmente curiosa”, na qual se podia verificar, “com espanto”, que o progresso havia selado “uma aliança com a barbárie”. Se ampliarmos um pouquinho que seja a dimensão do termo barbárie, é perfeitamente possível trazer a definição feita em 1938 até nossa própria época. Seguramente, o regime hitlerista – com os campos de concentração e de extermínio, a bestialidade das hordas de germânicos caçando gente como se fossem animais selvagens pelas ruas das mais desenvolvidas e industrializadas cidades da Europa – tem uma assinatura da barbárie única e insuperável. Tendo isso em consideração, cabe perguntar: será que a ultrafetichizada sociedade do século XXI, submetida até o aviltamento às necessidades da circulação de mercadorias, brutalizada pelo consumo de necessidades criadas nos confins das engrenagens do capital, disposta a sacrificar o que quer que seja para que o maquinismo siga operando a plena carga, não é ela também a própria expressão do que se poderia entender como barbárie? É certo que o extermínio tal como perpetrado pelos nazistas não se repetiu mais, não pelo menos na escala e nem tão sistematicamente organizado quanto – ainda que, desde aqueles idos, nunca tenhamos deixado de seguir dando provas da nossa espantosa predisposição para a prática da selvageria contra o outro. Mas que tipo de sensibilidade humana, de empatia para com a própria espécie e sua perpetuação, encontramos nessa nossa época, na qual o progresso avança como um bólido ingovernável? O que, ao olharmos para nós mesmos e nossos vizinhos, poderíamos contrapor à ideia de barbárie para, assim, livrar a nossa cara? Porque a barbárie não é produto do demônio e muito menos dos denominados bárbaros (justamente por aqueles que desfrutam as benesses do mundo próspero). Essa barbárie é uma construção genuinamente nossa, cada vez mais atrevida, nesse primeiro quarto do século XXI – não um descarte da história.