Marcelo Brice
Especial para o Jornal Opção

Era sábado de aleluia, portanto o dia da espera da graça. Acordei tarde, como de costume, me lembrando do Seu Madruga: Como ousam me acordar às 11 horas da madrugada? À porta uma trupe de crentes, certamente testemunhas de Jeová, pois adventistas guardam o sábado –como Vinícius de Moraes, que dizia “porque hoje é sábado”, só que no sentido contrário.

Um rapaz à frente:

— Bom dia!

E eu:

— Bom dia, tudo bem?

A testemunha de Jeová:

— Tudo bem. Estamos visitando a vizinhança para oferecer um material com a palavra sagrada, no intuito da sua família poder refletir sobre a obra de Deus.

Eu, o ateu:

— Obrigado pela oferta, mas somos ateus.

A testemunha de Jeová:

— Hi… desde sempre?

Eu:

— Sim, desde sempre. Boa sorte, obrigado.

A testemunha de Jeová:

— Bom dia.

Contei para o meu pai e minha irmã, disse que era a Bíblia”, ela ficou brava, porque eu não aceitei a Bíblia”. E temos várias em casa – uma, em frangalhos, que ela lê todo dia. Meu pai, que se intitula, corretamente, um ateu generoso, achou errado não aceitar. Ele, que minutos antes havia sido pouco receptivo, digamos, com um vendedor de panelas de cerâmica. Quando relatei, minha irmã:

— Panela de cerâmica é bom, muito chic. Casa de doido.

Eu ri. Religião é uma peste. Todas.

Porém, antes de descobrir a “verdade absoluta”, eu tinha falado na língua dos anjos aos 10 anos “rhá’bala’maxuria’bah’macharáia!”. A família de minha mãe é toda evangélica, a de meu pai, católica – embora minha avó paterna, Ondina, fosse umbandista, duma gentileza e fortaleza como aroeira, que só daria certo com uma diversidade de entidades superiores. Nunca fomos agressivos em termos de ideias religiosas em casa.

Há pessoas mais dotadas do aparelho da fé. E assim escutávamos minha avó materna, Iracema, cantar lindamente cânticos antigos (corinhos) aprendidos com os missionários americanos que a fizeram professora na roça e a família toda protestante.

Nunca entramos em tretas religiosas, porque sorrimos delas. Essa diatribe não é nossa, caso tenha sentido, é coisa de outra dimensão. Depois que desvirtuei da fé religiosa, conheci meu amigo mais crente de todos: Manoel Gustavo. E o mais sólido. Ele me colocou na lista de oração que tinha grudada no seu guarda-roupa. Fiquei tão orgulhoso que depois disso nossa amizade transcendeu – piada infame.

Manoel ficava horas comigo ao telefone no fim do ensino médio discutindo passagens da Bíblia, eu me aproveitando da minha formação evangélica nas escolas dominicais, discordava, mas gostava de pensar que poderia haver salvação, ou no mínimo “graça”. Depois, ele também descobriu a “verdade absoluta” e desviou do caminho, mas dona Giselda e o Batista, pais e pastores, já haviam lançado seu legado, dos bons.

Nem é por ter “estudado” – mesmo que ajude –, ter os títulos que minha carreira me exige, que me fiz um ateu não raivoso. Minha fé, estranha, utópica, realista, fantasiosa e materialista na vida que não termina – memória, não espiritualismo –, apesar de a vida biológica ceder, tem valido mais. A fé religiosa, quando bem nutrida e gerida, costuma ser bonita. Mas isso é romantismo. Pois possivelmente os vendedores (a trupe) de cerâmicas eram as mesmas pessoas que estavam doando bíblias.

Marcelo Brice é professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT), doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Goiás (UFG), com estágio pós-doutoral em literatura na Universidade Nova de Lisboa (UNL-IELT).