“Aquele pessoal que vive na região do Vale do Paranã, nos municípios de Cavalcante, Terezina de Goiás e Monte Alegre, é gente comum, como qualquer outro camponês daquela região” 

entrevista

Gilson Cavalcante

A tese do professor universitário Joãomar Carvalho não é um confronto com a antropóloga Mari Baiocchi, ele faz questão de ressaltar. Trata-se de estudo que envolve conceitos de cidadania e informação – linhas de pesquisa desenvolvidas no doutorado. No centro da tese surge a experiência dos calungas. Um processo que apresenta algumas controvérsias. Joãomar mostra outro viés em relação ao da professora Baiocchi: escolhe um grupo das comunidades negras de Goiás para descobrir quando e como eles conseguem encontrar um rumo à cidadania através da informação. Para realizar sua pesquisa, o professor precisou desconstruir um mito. Para isso, ele insere a descoberta dos calungas no redescobrir da democracia brasileira. Joãomar recorre ao contexto histórico para explicar a inserção dos calungas nas discussões sociais. “Além do fim de ditadura (1964-1985) e dos debates acalorados da Assembleia Nacional Constituinte (1987-88), comemorava-se também o centenário da abolição da escravatura (1888-1988). Em tempos de Constituição cidadã, com uma comunidade exposta aos veículos de comunicação receptivos, era possível abraçar uma causa mais pela crença do que pela realidade”, afirma o professor de jornalismo, ao Jornal Opção. Joãomar quer publicar a sua tese de doutorado em português e, para isso, está atrás de patrocinadores. A tese foi publicada em francês. Outra possibilidade para a edição do livro são os editais.

Por que o sr. decidiu realizar esta tese? Com qual intuito?
O objetivo dessa tese era discutir a questão da informação como pré-requisito para a cidadania. Mostra que as pessoas, tendo acesso à informação, conseguem construir uma consciência crítica de seus direitos e de seus deveres, que é um conceito básico de cidadania. Mas eu não tinha interesse de realizar uma tese simplesmente teórica, embora eu cite vários autores nesse estudo. Mas resolvi fazer o seguinte: eu tinha feito uma reportagem, em 1987, para o “Jornal do Brasil”, mas, depois da euforia da mídia nacional sobre os calungas e de conclusões aceitas pela comunidade acadêmica brasileira como verdade imutável, resolvi transformar o assunto num objeto de pesquisa científica. Quero esclarecer que o trabalho de campo que realizei, cuja tese foi defendida na Universidade de Paris 8, não é para contrapor os estudos realizados, anteriormente, pela premiada antropóloga Mari Baiocchi. No entanto, as conclusões conclamaram para o debate. Essa gente não era calunga, mas passou a ser depois de uma boa estratégia acadêmica ou de marketing, como se pode também inferir por ângulo diverso. Orientado por Armand Mattelart, um dos principais teóricos contemporâneos de comunicação, o trabalho teve a melhor nota conferida pela conceituada universidade francesa.

Mas como essa comunidade de afrodescendentes se organizou ao longo do tempo?
Os calungas foram descobrindo, ao longo do tempo, a importância da informação. Esta descoberta começou a instaurar, por isso mesmo, um lento e gradual processo de aprendizagem política. Eles constataram que o fato de desconhecerem aspectos de sua própria vida poderia custar-lhes a paz. Não era pretensão minha desancar nenhum intelectual goiano. Goiás organizou sua estrutura simbólica a partir de registros culturais e históricos como as bandeiras, a poesia de Cora Coralina, a Guerrilha do Araguaia e a descoberta de um grupo de famílias negras no Nordeste do Estado que seria remanescente de um quilombo do século 18. Imagine agora se parte desse quadro de redenção histórica do goiano se partisse.

Imagine se os calungas jamais tivessem existido. Pois bem, em janeiro de 1990, a faculdade organizava o Fala Calunga, evento para discutir a vida da comunidade que seria remanescente de quilombos do século 18. A plateia começou a cobrar da coordenação uma espécie de direito de voz dos representantes dos calungas. É que ninguém daquela comunidade havia falado sobre seus costumes e a própria vida até aquele momento. No final da década de 80, muita gente falava e definia o povo, mas ele mesmo não costumava ser ouvido pelos veículos de imprensa. Era somente objeto de estudo. À época, a antropóloga atuava com certa restrição. Ou seja: ela não permitia liberdade de contato com tais comunidades. Existia um manto preservacionista impedindo a coleta de dados sobre o grupo. A partir destas observações, comecei a me interessar cada vez mais pelo núcleo localizado na região Norte de Goiás. Além de realizar visitas na própria comunidade, cataloguei inserções dos termos calungas na mídia e historiografia brasileira e regional. Desde 1991, a região, motivo da polêmica intelectual, é considerada Sítio Histórico e Patrimônio Cultural Kalunga. Não bastasse isso, várias conclusões foram assimiladas como verdades por conta de instituições culturais civis e do próprio governo. A discussão sobre os calungas começou com uma linha de pesquisa antropológica que depois foi abraçada pelo Estado de Goiás, a partir do Idago [Instituto de Desen­volvimento Agrário de Goiás], comandado pelo advogado Aldo Azevedo, que me incentivou e me ajudou muito no desenvolvimento dessa tese.

Livros, músicas, documentários, reportagens e leis foram feitos para regulamentar e perpetrar as histórias dos calungas. Nenhum pesquisador anterior a Baiocchi faz alusão explícita a qualquer existência de calungas em Goiás, muito menos a um quilombo com esta denominação. Luiz Palacin, referência em estudos históricos sobre o Estado, teria sido uma das fontes da professora Mari Baiocchi, mas ele não fala em calungas ou mesmo deste quilombo especial naquela região.

Não existem provas científicas de que a comunidade apresentada como calunga seja oriunda de algum quilombo do mesmo nome. aquele pessoal é gente comum”
Não existem provas científicas de que a comunidade apresentada como calunga seja oriunda de algum quilombo do mesmo nome. aquele pessoal é gente comum”

Fale um pouco como foi a sua experiência no contato com os calungas.
Estes moradores do Vale do Paranã revelavam, apesar de todo o processo de exclusão a que foram submetidos historicamente, ter uma consciência elementar do que queriam. Sabiam pedir tudo que precisavam, embora sem apresentar, por razões óbvias, um discurso mais elaborado. Na realidade, suas reivindicações não fugiam dos pleitos de outros grupos da região, quando forçados pelas circunstâncias a fazê-lo diante de alguma autoridade. Já pela metade dos anos 1980, com maior abertura e contato mais intermitente com a sociedade externa, eles já reclamavam, por exemplo, até mesmo, das contínuas visitas de pesquisadores universitários. Afinal, que tipo de gente era os calungas? Negros? Sim. Pobres? Sim. Esquecidos pelas autoridades? Sim. Mas se no Brasil este fenômeno pode ser percebido em quase todas as regiões, o que os calungas tinham de especial? Certamente o fato de terem sido tratados como etnicamente especiais, quando, na realidade, sempre foram brasileiros comuns, como tantos outros na mesma situação. Agora, eles estavam se conscientizando de sua existência, dos seus problemas, de suas possibilidades e desafios Os calungas não eram e não são africanos perdidos num quilombo perto de Brasília. São camponeses brasileiros, de longínqua descendência africana, como a quase totalidade da população da região Nordeste de Goiás, na divisa com o Estado da Bahia. Por esta divisa houve, historicamente, um grande intercâmbio comercial, que remonta ao século 18: além do comércio, esta divisa serviu muito bem ao contrabando de ouro e para a entrada e saída de pessoas, negras ou não. Os calungas não tinham e não têm nenhum tipo de isolamento, que se possa atribuir a um possível estatuto étnico especial. Tudo tem a ver com a histórica exclusão, principalmente, do homem brasileiro do campo. São excluídos como o são vários outros grupos sociais, ali mesmo na região do Nordeste de Goiás e em outras regiões do Brasil Os calungas não precisam de quilombo para ser o que são. Se eles rejeitavam esta forma de nominação arbitrária, eles descobriram, em pouco tempo, que o termo pejorativo do passado era a única possibilidade de garantirem um pedaço de terra para viver. Eles estão, a cada dia, se habilitando com competência para o exercício dos seus direitos básicos, ainda de maneira precária, porque não conseguem percebê-los na sua amplitude. Já verificamos como se deu historicamente este processo. Este passo, rumo a uma consciência e a uma prática de cidadania, só foi possível quando eles assumiram seu próprio discurso, fazendo da informação dos outros um instrumento de construção de seu próprio conhecimento. Não existem provas científicas de que a comunidade apresentada como calunga seja oriunda de algum quilombo do mesmo nome. Aquele pessoal que vive na região do Vale do Paranã, nos municípios de Cavalcante, Terezina de Goiás e Monte Alegre, é gente comum, como qualquer outro camponês daquela região.

O sr. consegue comprovar que, para exercer a cidadania, a comunidade afrodescendente daquela região necessita como premissa básica de informação e comunicação?
Parece lógico imaginar uma estreita relação entre infor­mação/comunicação e cidadania. A informação é entendida aqui como o conjunto dos diversos saberes da experiência humana, construídos no ambiente da família, das crenças, da escola e da sociedade. A cidadania, como sabemos, é dimensão política da participação dos cidadãos na vida comunitária e tem como fundamento a realização dos direitos humanos. Estes, no entanto, não são naturais, mas uma construção cultural e política, que se realiza na história. Neste processo, a informação cumpre papel essencial. O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre esta relação entre informação/comunicação e a construção da cidadania, a partir da experiência dos calungas, um grupo de camponeses negros do Nordeste de Goiás. Eles estavam sendo apresentados, no início dos anos 80, como remanescentes de um quilombo, que teria sido constituído no século 18 e estavam ameaçados de perderem suas terras por causa da construção de uma usina hidrelétrica programada pelo governo federal. Graças a esta condição, estes camponeses ganharam repentina visibilidade, que mobilizou a imprensa, os meios universitários e políticos e provocou a suspensão da execução da usina, no início dos anos 90. Esta experiência dos calungas revela a dimensão óbvia do uso da informação para a construção de uma consciência política. No caso dos calungas, o resultado desejado foi, no entanto, mais produto das pressões externas do que de sua consciência política, que se constrói noutro patamar. Em segundo lugar, a experiência mostra as implicações deste mesmo uso da informação, mas dissociado da dinâmica histórica, que trabalha com outra noção de tempo histórico. De toda maneira, esta experiência dos calungas é reveladora destes desafios de construção da cidadania em nosso país, principalmente se considerarmos que este processo ultrapassa o alcance da informação midiática e diz respeito à questão dos direitos fundamentais do homem. Parece óbvia a hipótese, segundo a qual o exercício da cidadania só se dá quando as pessoas se dão conta de que são o que são pela descoberta do que foram. E isto é determinante para a construção dos passos seguintes. A história revela que a democracia só se materializou em realidade política, quando a cidadania foi, antes de tudo, uma construção política e cultural das comunidades humanas. Fora desta percepção, a ideia de cidadania fica circunscrita ao formalismo jurídico-político, sem referência de vida concreta. Assim, parece evidente constatar que os elementos básicos constitutivos da cidadania – moradia, educação, saúde, segurança, etc. – só podem ser alcançados quando for possível a cada pessoa o acesso às informações sobre si, sobre os outros e sobre a experiência humana em geral.