Empresa adquiriu a Celg D por R$ 2 bi, e após cinco anos abre negociação estimada em R$ 10 bi, mesmo sem atingir os índices de qualidade do serviço

As negociações encampadas pela Enel para vender a distribuidora em Goiás – a antiga Celg Distribuição (Celg-D) – movimentou o setor e trouxe para discussão quais os reflexos para o Estado. A informação sobre a possível venda da concessão da distribuição de energia em Goiás partiu de fontes da agência de notícia Reuters, e desde então são avaliadas por especialistas do setor, que, em geral, acreditam ser prejudicial para os goianos. O governo do estado também manifesta preocupação e busca participar da tratativas junto a empresa. 

As informações são de que a Celg-D está avaliada em cerca de R$10 bilhões, incluindo dívidas. A Enel pagou R$ 2,1 bilhões para adquirir a Celg-D dos antigos controladores – Eletrobras e Estado de Goiás – em um leilão de privatização em 2016. Na segunda-feira, 25, dia em que foi dada notícia sobre as negociações, as ações da Enel subiram 1,9%. Entre as empresas interessadas estão a CPFL Energia, controlada pela State Grid Corporation of China, a Neoenergia, controlada pela espanhola Iberdrola, e a EDP Brasil, da qual a portuguesa EDP é a maior acionista, além das brasileiras Energisa e Equatorial Energia.

Na avaliação de especialistas do setor, esse movimento da Enel tem como base os ganhos econômicos e desprezo pelos impactos sociais ou na qualidade do fornecimento de energia –  serviço considerado essencial para sociedade. O engenheiro eletricista Salatiel Pedrosa Soares Correia, trabalhou na Celg por 34 anos. Nesse período, ele pode conhecer a estatal e suas nuances como poucos, e o resultado desse conhecimento pode ser lido na obra “O Capitalismo Mundial e a Captura do Setor Elétrico na Periferia”, escrito por ele e lançado pela Editora Appris. Para ele, a venda da empresa por um valor tão alto é a demonstração de que o intuito sempre foi o de capitalizar a empresa, gerando divisas para a matriz da Enel, em seu país de origem. 

“É um paradoxo uma empresa que assumiu a concessão pagando R$ 2 bilhões, agora  chega a valer R$ 10 bilhões, mas não tem qualidade no serviço. Essa valorização se dá em razão do ganho de gestão, mas é um contrassenso ter o alto valor de capital e ter o serviço abaixo das metas estabelecidas pela Aneel (Agência Nacional de Energia Elétrica)”, avalia Salatiel Pedrosa. “Não há problemas em ter ganhos de gestão e de produtividade, mas isso tem que ser repartido com a sociedade”, completa. 

O engenheiro aponta que houve reiterados ajustes tarifários que beneficiaram a empresa Enel Goiás, entretanto a qualidade do serviço sempre gerou insatisfação entre os consumidores goianos. “Não houve investimento adequado na expansão de rede, algo que é uma necessidade urgente no estado”, exemplifica.

Para Salatiel, a Enel promove a negociação da distribuidora em Goiás por motivação mercadológica, ou seja, ela adquiriu uma empresa descapitalizada, fez poucos investimentos, mas demonstrou  que era possível reorganizar e ter altos lucros. Assim, mesmo sem atingir as metas estabelecidas em contrato, ela passa a concessão adiante, conseguindo atingir alta lucratividade sem corresponder com as responsabilidades impostos para longo prazo. “Trata-se de um capital que veio para ficar pouco tempo. Basta avaliar que a expansão da Enel sempre se dá em locais onde as instituições públicas são frágeis e onde a cidadania não é forte, como na América Latina, no interior da Rússia e Arábia. Observe que, mesmo sendo uma empresa da Itália, ela não entra na Alemanha, França, Espanha ou Holanda. Isso é porque nestes locais atitudes como essa que ela tenta promover em Goiás são inaceitáveis”, expõe.

“Se alguém tem que ter lucro com a venda
para um terceiro, que seja o Estado de Goiás”

Carlos Martin

A opinião de Salatiel é compartilhada com outros especialistas. O engenheiro civil, doutor em Planejamento de Sistemas Energéticos pela Unicamp, ex-professor de UFMG e atual titular da Universidade Federal de Itajubá (UNIFEI), Carlos Barreira Martinez, expõe que o que ocorre com a Enel já era de se esperar e já aconteceu em outros estados brasileiros. “Essas empresas não possuem objetivos nacionais ou regionais. Elas estão aqui  para fazer negócios, ou seja, assume uma situação difícil, promove uma recuperação e põe a venda. Não há novidade no que está acontecendo. E digo o que ocorre com a Celg, deve ocorrer também com a Eletrobras”, avalia. 

Carlos Martinez aponta que a Enel se aproveita de uma situação contratual que lhe é permissiva e faz da Celg uma boa fonte de lucros para a empresa estrangeira. “Apesar de já se esperar essa negociação, no meu entendimento, está errado. O correto seria a Enel devolver a empresa ao estado e então a Celg ir novamente para um leilão. Mas isso depende do contrato. E se for um contrato mal feito – e tudo indica que é – o estado ficará no prejuízo, pois a empresa comprou, promoveu e a valorização e agora vende por um valor bem mais alto”, argumenta.

Preocupação do Estado

A notícia das negociações da Enel com outras empresas causou preocupação ao governo do Estado. Na visão da gestão estadual a venda da empresa não está ligada somente a lucratividade com o negócio, mas também se deve ao fato da Enel estar distante de honrar compromissos acertados quando o contrato foi assinado no início de 2017. Em busca de acompanhar de perto o processo, o estado tem aberto canais junto a Enel e já promoveu reuniões com a Aneel e Ministério de Minas e Energia. 

O contrato em vigor com a Enel firmam metas que devem ser atingidas para garantir que a concessão seja continuada. Os indicadores utilizados são o DEC e o FEC, que apontam respectivamente a média da duração das interrupções de fornecimento e a frequência de quedas de abastecimento. Mas a empresa sempre operou distante dessas metas. Segundo o secretário da Governadoria do estado de Goiás, Adriano Rocha Lima, foi percebido que a empresa distante de atingir o nível de qualidade exigido.

Adriano Rocha aponta que em fevereiro do próximo ano a Aneel emitirá relatórios com as medições dos índices, e tudo indica que a empresa estará abaixo das metas, que vai resultar na automática cassação da concessão — a chamada caducidade. “Especialistas dizem que em oito meses a Enel não reverterá a condição, em especial o FEC. Assim a empresa está se antecipando e saindo. Mas poderia ter feito isso de forma profissional e tranquila ainda no ano de 2020”, avalia.

O secretário lembra que há dois anos o governo do estado, ao avaliar a baixa qualidade do serviço prestado, propôs que a Enel passasse a concessão para outra empresa com capacidade de investimento e gestão que conseguisse atingir os indicadores – proposta recusada. “Passou-se dois anos e agora temos a prova de que a empresa não conseguiu”, aponta.

Adriano Rocha confirma que o contrato de concessão com a Enel permite que o controle societário será transferido, ou seja, a venda da empresa está respaldada juridicamente. “O estado está acompanhando as negociações dentro do que ele pode. Queremos minimizar os impactos e garantir que o novo operador tenha condições de reverter o quadro de má qualidade no sistema de energia que há hoje”, afirma. 

Politica de privatização

A venda da Enel Goiás para outra empresa do setor privado é fruto de uma política de privatizações que começou há pouco mais de duas décadas e os motivos para essa negociação tem razões que podem ser resgatadas na história do país.

Durante os anos de 1980, a economia brasileira entrou gradualmente em declínio, uma vez que esta era corroída pela alta inflação e por juros elevados. Foi neste período que houve a interrupção dos créditos de internacionais, provocando no setor elétrico um fluxo negativo de caixa e o crescimento da inadimplência por parte das concessionárias estaduais. Com o aumento do consumo de energia, no final da década de 1980, aliado aos poucos investimentos realizados no setor, por conta da situação deficitária das contas externas, o fornecimento de eletricidade ficou comprometido, uma vez que não foi possível realizar uma expansão necessária.

Foi neste cenário que o governo federal decidiu implementar mudanças. Assim o processo de privatização das empresas de distribuição de energia elétrica teve início em 1995. Essas concessões fizeram parte do Programa Nacional de Desestatização (PND), criado em 1991 pelo governo federal, com o intuito de enxugar a máquina pública, como possível forma de reduzir os custos das empresas vendidas e, consequentemente, melhorar suas eficiências.

Goiás adotou o modelo de privatização ainda em 1997, quando a usina Cachoeira Dourada foi privatizada, por meio de leilão público, pelo valor de R$ 820 milhões. A empresa que arrematou a usina era do Grupo Endesa España — à época chilena. O contrato entre a empresa e a Celg-D nunca foi vantajoso para a estatal responsável pela distribuição da energia em Goiás. Esse foi um dos motivos para as dificuldades financeiras enfrentadas pela empresa que controlada pelo governo de Goiás. 

Em 2015, diante da crise financeira, a Celg-D foi federalizada e seu controle passou à Eletrobras. E dois anos depois houve o segundo processo de privatização do setor elétrico em Goiás. A empresa italiana Enel foi a única a apresentar proposta no leilão de privatização, ofertando R$ 2,187 bilhões por 95% das ações da distribuidora goiana, um ágio de 28%.

“Quando uma empresa assume a concessão de um serviço essencial como é a eletricidade, ela precisa se inserir dentro de um plano de governo estadual. É obvio que vai trabalhar pelo lucro, mas também precisa suprir as necessidades de onde ela está inserida” diz Salatiel Pedrosa.

O engenheiro aponta que Goiás guarda em seu território perfis diferentes de progresso, e cada um necessita de um modelo e planejamento para fornecimento de energia. Ele cita que no Estado há necessidade de expansão para regiões ligadas ao agronegócio, assim como há cidades que concentram mais indústrias ou residências. “O olhar da empresa sempre foi para as regiões mais produtivas, mas não atendeu aos desequilíbrios regionais”, opina. 

Desde 2017, quando a Enel Distribuição assumiu o serviço de fornecimento
da energia elétrica em Goiás, a empresa italiana sobre dificuldades
no relacionamento com os consumidores e com a classe política.
Alvo de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na
Assembleia Legislativa de Goiás e de uma Comissão
Especial de Inquérito (CEI) na Câmara Municipal
de Goiânia, a empresa também já foi objeto
de um processo pelo Procon Goiás.

Relembre a privatização

Dentre as últimas decisões tomadas pelo ex-governador Marconi Perillo (PSDB) na reta final de seu mandato estava a venda da maior estatal do Estado. A privatização passou pela Alego recebendo votos contrários dos deputados Adib Elias (PMDB), Adriana Accorsi (PT), Bruno Peixoto (PMDB), Ernesto Roller (PMDB), Isaura Lemos (PC do B), Luis Cesar Bueno (PT), José Nelto (PMDB), Renato de Castro (PT) e Humberto Aidar (PT).

Em fevereiro de 2017, o governador tucano recebeu a visita do presidente Enel no Brasil — empresa italiana que atua na geração e distribuição de energia elétrica —, Carlo Zorzoli, e do presidente da Eletrobras, Wilson Ferreira, que juntos assinaram o contrato de privatização da Companhia Energética de Goiás (Celg).

A canetada resultou no depósito de R$ 1,1 bilhão nos cofres do Estado. Dinheiro que, segundo o até então governador, seria aplicado no aperfeiçoamento da infraestrutura goiana. O restante, equivalente a R$ 1,06 bilhão, foi destinado à Eletrobras, que possuía a maior parte das ações da estatal, 50,93%, especificamente.

O contrato de compra e venda foi assinado sob chuva de incentivos e críticas por parte dos goianos. De um lado, apoiadores reforçavam a tese de que somente essa medida seria capaz de salvar o declínio da estatal, bem como fornecer os investimentos que ela tanto precisava. Do outro, opositores lamentavam a perda da empresa para o capital privado, o baixo custo ao qual foi entregue e, sobretudo, as especulações acerca dos interesses particulares que poderiam estar por trás da decisão. Com o negócio, os novos proprietários da companhia se comprometeram a realizar investimentos em tecnologia para melhorar os serviços prestados aos goianos. Mas diante das reclamações, do registro de problemas e queixas, o negócio ainda não se mostrou interessante para os consumidores.

Posicionamento da Enel Goiás

Em nota ao Jornal Opção, a Enel disse que não comenta as especulações de mercado e também se defendeu dos apontamentos que questionam a qualidade do serviço prestado. Veja a nota na íntegra.

A Enel não comenta rumores de mercado.

Quanto à questão da qualidade, a Enel Distribuição Goiás informa:

  • A Enel não só cumpriu mas já superou a meta do Fec, apresentando resultado de 8,3 vezes em fevereiro de 2022. De acordo com contrato de concessão, até o fim do ano de 2022, a Enel precisa atingir Frequência anual média de quedas (Fec) de 9,22 vezes – meta já superada – e  Duração anual média das quedas (Dec) de 12,18 horas.
  • Quanto ao Dec, a companhia segue em trajetória contínua de evolução. Em 2017, os goianos ficavam 31,7 horas sem energia, ao passo que hoje esse número já caiu em torno de 40%, para 18,20 horas. Fizemos um plano agressivo de investimentos para 2022, com foco em manutenção, correção de anomalias e podas, e entendemos ser possível chegar ao fim do ano dentro da meta.
  • Os investimentos feitos pela Enel estão associados a um plano de negócio em 3 frentes: estabilidade, atendimento à demanda e flexibilidade. Portanto, não estamos perseguindo apenas a redução na frequência e na duração das quedas de energia. Há vários outros compromissos que estão sendo atendidos, por exemplo, o atendimento à demanda reprimida histórica do Estado, a redução do passivo de conexões rurais e a instalação de bancos de capacitores, compromissos firmados em Termo assinado com Governo de Goiás em 2019. É importante relembrar que no dia 26 de agosto de 2019 nos sentamos à mesa com o governo e ali foram definidas as questões consideradas essenciais de serem atendidas para dar suporte ao crescimento de Goiás. Desde então, essas questões são consideradas pela Enel prioridade. Em 2021, cumprimos 113% do Termo de Compromisso firmado com o Governo.  
  • Quando assumimos a distribuidora, Goiás tinha uma demanda reprimida de 617 MVA. Fechamos 2021 com 56,81 MVA, ou seja, estamos próximos de zerar essa demanda. Recentemente inauguramos a Linha Brasília-Leste Itiquira, com 56 quilômetros, que está liberando carga para cerca de 163 mil clientes da região Nordeste de Goiás. Vamos entregar agora, dia 10 de maio, o sistema de alta tensão São Marcos, em Cristalina, investimento de R$ 90 milhões, que vai garantir energia para uma das maiores áreas irrigadas da América Latina.
  • No caso das conexões, quando assumimos, o passivo era de 24 mil pedidos não atendidos. Reduzimos em mais de 80% esse passivo, conectando comunidades historicamente esquecidas, como os Kalungas do município de Cavalcante, que aguardavam a energia por décadas. 
  • No que diz respeito aos bancos de capacitores, foi realizada até agora a instalação de 571,35 MVAr em potência, além da meta de 569 MVAr prevista para dezembro de 2021.
  • Outro aspecto importante de ser destacado é o aporte de tecnologia. Trabalhamos com o conceito de redes do futuro, então todo o trabalho de revisão e reconstrução das redes de Goiás foi pautado na preparação do sistema para ser mais resiliente às variações climáticas e para suportar o crescimento da demanda no longo prazo. Construímos 16 subestações em apenas 4 anos. Modernizamos e ampliamos 116. Transformamos o sistema elétrico de Goiás num canteiro de obras. Construímos mais de 17 mil quilômetros de redes de alta, média e baixa tensão. Instalamos mais de 9 mil equipamentos de automação na rede, entre telecontroles e tripsavers.
  • No atendimento às emergências, dobramos o número de equipes em campo, dobramos o número de bases operacionais (de 28 para 61) distribuídas pelo Estado, equipamos as equipes com o que há de mais moderno, inclusive drones e helicópteros para inspeções. 
  • De 2017 a 2021, a Enel investiu R$ 5,7 bilhões no sistema elétrico de Goiás. Se fizermos a média, isso representa mais de R$ 1 bi por ano, contra uma média conhecida de menos de R$ 200 mi do período Celg. Antes da privatização, por vários anos, a Celg investiu abaixo do nível de depreciação dos ativos, o que acarretou alto nível de defasagem e sucateamento do sistema elétrico de Goiás.
  • Se observado o investimento feito pela Enel ano a ano, fica claro que nos anos de 2020 e 2021 houve um forte processo de antecipação de investimentos para acelerar a melhoria na qualidade do serviço e atender às exigências feitas pelo poder público e órgãos reguladores.  Com isso, houve também uma aceleração sem precedentes nos resultados. A evolução que alcançamos em tão pouco tempo é histórica, ainda mais se considerarmos que estamos falando de um setor de capital intensivo, onde os investimentos são feitos e resultados projetados para acontecerem num prazo de 10 anos ou mais.
  • Em relação ao contrato de concessão, estamos confiantes no trabalho que temos realizado em Goiás e na possibilidade de demonstrarmos ao regulador a consistência dos avanços que foram alcançados não só no indicador de duração das interrupções, mas também no sistema como um todo.
  • Sobre o ranking da Aneel de Desempenho Global de Continuidade (DGC), a metodologia utilizada não reflete a melhoria apresentada pela companhia. O ranking observa os valores de duração e frequência média das interrupções de energia (DEC e FEC) das distribuidoras em relação aos limites regulatórios, sendo que nem todas as distribuidoras do Brasil fazem parte desse ranking. Como estes limites variam para cada empresa, os resultados se tornam mais desafiadores em algumas concessões, não refletindo no ranking, na mesma proporção, os avanços nos números absolutos dos índices de qualidade. Desde 2012, a Celg-D figurava nas duas últimas posições do ranking de continuidade do serviço divulgado pelo regulador.  A empresa reforça que seguirá comprometida com a melhoria constante da qualidade do fornecimento de energia em Goiás, de forma consistente e sustentável.