STF decide que bancos podem retomar imóveis sem decisão judicial; especialistas explicam

05 novembro 2023 às 00h01

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No final de outubro, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a possibilidade de bancos e outras instituições financeiras retomarem imóveis em processo de financiamento com acúmulo de dívidas, sem a necessidade de uma decisão judicial. Foram oito votos a favor e dois contra.
A maioria dos ministros seguiu o voto do relator, Luiz Fux, que argumentou que a execução extrajudicial não exclui o controle judicial, pois o devedor ainda pode recorrer ao sistema judiciário para proteger seus direitos caso encontre irregularidades.
O caso em questão envolveu uma lei de 1997 que estabeleceu a alienação fiduciária de imóveis, permitindo que o próprio imóvel adquirido fosse utilizado como garantia para o financiamento. Sob essa modalidade, o imóvel permanece em nome da instituição financeira até a quitação da dívida, enquanto o comprador mantém o direito de uso. Após o pagamento integral da dívida, o mutuário pode registrar o imóvel em seu nome.
De acordo com a lei, se o pagamento não for efetuado ao longo do contrato, o banco pode retomar o processo de forma extrajudicial, ou seja, por meio de cartório, sem a necessidade de intervenção judicial.
É importante lembrar que essa decisão do STF diz respeito a contratos do Sistema Financeiro Imobiliário (SFI) e estabelece um precedente de repercussão geral que se aplicará a todos os processos similares em todo o país.
Em relação ao Sistema Financeiro de Habitação (SFH), a Suprema Corte já havia decidido, em 2021, que “é constitucional, pois foi devidamente recepcionado pela Constituição Federal de 1988, o procedimento de execução extrajudicial”.
Antes de mais nada, vale esclarecer a diferença entre os sistemas. De acordo com o advogado Ezequiel Morais, mestre em direito civil pela Universidade de São Paulo (USP), o SFH destina-se ao financiamento imobiliário às pessoas de baixa renda, para aquisição, construção ou reforma de imóveis residenciais.

“Surgiu em 1964, com o intuito de reduzir o déficit habitacional no País [o que era uma grande preocupação do Governo Federal à época – e que continua sendo]. Tempos depois, contemplou também as pessoas que se enquadravam em outras faixas de renda. O SFH faz uso de recursos provenientes do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo – SBPE, ou seja, uma junção dos saldos da caderneta de poupança e do FGTS”, explica.
Já o SFI, ainda conforme o advogado, é mais amplo e visa não só a aquisição, construção ou reforma de imóveis residenciais, mas abarca os imóveis comerciais, industriais e aqueles situados na zona rural, e outros.
“Além disso, outra diferença importante é a fonte dos recursos, visto que estes são das próprias instituições financeiras e de outros fundos; e isso pode reduzir ou aumentar a taxa de juros, pois são muito relevantes, por exemplo, os perfis dos mutuários e a análise do score de crédito deles”, diferencia.
Impacto jurídico
Na ação, o Supremo debatia uma lei de 1997 que estabeleceu a prática da alienação fiduciária de imóveis, permitindo que o próprio imóvel adquirido seja utilizado como garantia para o financiamento.
Na alienação fiduciária, o imóvel permanece registrado em nome da instituição financeira até que a dívida seja integralmente quitada. O comprador, durante o período de financiamento, tem o direito de uso do imóvel. Após o pagamento total da dívida, o mutuário precisa comparecer a um cartório para formalizar a transferência do imóvel para o seu nome.
Durante o contrato, se o pagamento não for efetuado, de acordo com a legislação, o banco tem o direito de retomar o imóvel de forma extrajudicial, ou seja, por meio de um cartório, sem a necessidade de intervenção do sistema judicial. Nesse sentido, para o advogado André Aidar, professor da PUC-GO e especialista em análise econômica do direito, explica que não haverá impacto jurídico.

“Nada muda na prática. O STF apenas confirmou o que estava disposto na Lei 9.514 de 1997. Até então, a gente tinha apenas alienação fiduciária de bens móveis. A possibilidade de retomada extrajudicial prevista nessa lei refere-se exclusivamente à modalidade de alienação fiduciária, porque nesse tipo de garantia o bem adquirido já pertence ao banco. Para as outras modalidades de garantia, como a hipoteca, por exemplo, que é a modalidade mais tradicional, continua sendo necessária à execução judicial para a expropriação do bem, em caso de inadimplemento”, justificou.
Do mesmo modo, Ezequiel Morais afirma que não houve mudança alguma. Ele lembra ainda que a lei já foi declarada constitucional, apesar de pessoalmente não concordar com a retomada extrajudicial.
“Os procedimentos extrajudiciais nela previstos devem ser estritamente observados pelos bancos, segundo o STF, sob pena de nulidade que pode ser alegada em ação judicial. Portanto, é, sim, possível o mutuário perder a sua residência, de forma extrajudicial (embora não concordemos), caso haja alguma infração contratual, especialmente inadimplência no que se refere aos pagamentos das parcelas do financiamento. Há muito tempo, inclusive, ocorre isso”, argumenta.
O advogado criminalista, Pedro Sérgio, ressalta que a proposta é agilizar a retomada de imóveis cujos compradores se tornem inadimplentes com o sistema financeiro. O argumento é o de que assim agindo, facilita-se a vida dos bancos quanto aos inadimplentes e, em tese, tendo rapidamente os imóveis de volta sem longas demandas judiciais, que levaria a uma queda da taxa de juros, posto que também ficaria mais barato o serviço do financiamento. Mas, ele faz uma ressalva.

“Não se pode deixar a via judicial fora da retomada do imóvel uma vez que a inadimplência pode ser decorrente de vários fatores, um deles, por exemplo, pode ser causado pelos próprios bancos, como altas taxas de juros e atualizações indevidas. Por outro lado, o Código de Defesa do Consumidor estabelece limites e na relação entre banco e cliente este último é a parte mais fraca e vulnerável da relação, portanto merece mais proteção do Estado. Inclusive a lei prevê inversão do ônus da prova e a responsabilidade objetiva do fornecedor de bens e serviços”, destaca.
O caso analisado
O Ministro Luiz Fux enfatizou que a execução extrajudicial não é arbitrária, pois os contratos foram acordados entre as partes envolvidas. Ele destacou que esse instrumento contribuiu para reduzir os custos e incertezas relacionados à obtenção de garantias imobiliárias e impulsionou o mercado imobiliário brasileiro. Fux citou que, entre 2007 e 2017, o volume de crédito aumentou de 2% para 10% do PIB e que isso resultou em um aumento da demanda por imóveis, estimulando a construção civil e criando mais de 1 milhão de empregos.
Além de Luiz Fux, o voto foi acompanhado pelos ministros Cristiano Zanin, André Mendonça, Alexandre de Moraes, Dias Toffoli, Kassio Nunes Marques, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso.
“É constitucional o procedimento da lei 9.514/97 para execução da cláusula de alienação fiduciária e garantia, haja vista compatibilidade com as garantias previstas na Constituição Federal”, defendeu o STF.
Por outro lado, Edson Fachin e Cármen Lúcia votaram contra. “Confere poderes excepcionais a uma das partes do negócio jurídico, restringe de forma desproporcional o âmbito de proteção do direito fundamental à moradia”, afirmou Fachin.
“[É] uma forma violenta de cobrança extrajudicial, incompatível com os princípios do juiz natural, do contraditório e do devido processo legal, que permite seja o devedor desapossado do imóvel financiado, antes que possa exercitar qualquer defesa eficaz”, alegou a defesa.
O processo em questão refere-se a um recurso interposto por um devedor de São Paulo contra a Caixa Econômica Federal (CEF). No referido recurso, o devedor alega que a autorização para que o credor recupere o patrimônio sem a necessária intervenção do Judiciário constitui uma violação ao devido processo legal, e que essa possibilidade deve ser rejeitada à luz dos princípios do Estado democrático de Direito.
O Tribunal Regional Federal da 3ª Região havia decidido que a medida não violava normas constitucionais e que a intervenção do Judiciário só seria necessária se o devedor considerasse apropriado.
Para André Aidar, realmente não há uma violação ao devido processo legal. “O bem imóvel na alienação fiduciária já pertence à instituição financeira. Então, você exigir do banco uma ação judicial, que é cara, demorada, para que ele possa retomar algo que já pertence a ele, só beneficia os maus pagadores, porque isso vai gerar custos ao sistema financeiro e vão ser repartidos entre todos os clientes, inclusive aqueles que pagam seus financiamentos de forma correta e pontual, e representam enorme maioria dos consumidores. Então, isso traz uma segurança jurídica maior para o sistema financeiro e tende a levar, no futuro, a um aumento da oferta de crédito e a condições mais favoráveis de pagamento no que diz respeito à taxas mais baixas e prazos mais longos para os financiamentos”, pontuou.
Ezequiel Morais também acredita que não há uma violação do devido processo legal propriamente dito, em seu sentido estrito, mas argumenta outra irregularidade.
“Há violação de um preceito constitucional superior, imperativo, basilar, de primeira grandeza: a inafastabilidade do controle judicial, direito fundamental que está previsto no art. 5.º, XXXV, da Constituição Federal de 1988 (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”). Houve, com todo o respeito que nutrimos pelos julgadores que proferiram a decisão, ferimento a esse direito e princípio. Não só. Houve ferimento a outros direitos (existenciais = à moradia); e esse fato poderá gerar repercussão em vários casos semelhantes ou iguais que versarem sobre tais contratos e tais leis infraconstitucionais especiais. Em resumo: trata-se de retrocesso. É mais uma vitória das instituições financeiras e do mercado imobiliário – indissociáveis parceiros”, critica.
“Não se trata somente de resguardar a segurança jurídica no âmbito dos contratos por adesão, é preciso assegurar e estimular a economia sem que haja sacrifício do projeto constitucional, que tem na pessoa humana e, consequentemente, na solidariedade e na justiça social, o seu valor mais elevado”, completa.
Tanto a Caixa quanto o Banco Central defenderam o uso do instrumento do TRF-3 no Supremo. Fux ressaltou que a questão precisava ser decidida pelo STF a fim de fornecer segurança jurídica aos contratantes e estabilidade nas relações jurídicas no mercado imobiliário brasileiro, o que também impacta nas políticas governamentais de estímulo à moradia.
Ele argumentou que os contratos do Sistema Financeiro Imobiliário são amplamente utilizados em todo o país e que as taxas de juros, inclusive em programas sociais de incentivo à moradia, são estabelecidas de acordo com os riscos associados à inadimplência e ao tempo estimado para a recuperação de imóveis nessas circunstâncias.
O mestre em direito civil ressalta que o objetivo da aprovação do novo CPC foi resguardar a segurança jurídica entre os bancos e os mutuários nas relações contratuais envolvendo financiamento imobiliário, além de proteção aos direitos constitucionais e infraconstitucionais.
“Isso também é segurança jurídica. Não é sugerível afastar a interferência do Estado-Juiz nas relações entre os particulares, principalmente nos contratos não paritários e de adesão, uma vez que a afronta à ordem principiológica constitucional e infraconstitucional pode retirar do negócio jurídico (contrato) um de seus requisitos de validade (ou de eficácia), não se podendo aí admitir a prevalência do ato jurídico perfeito e da segurança jurídica dele decorrente”, complementou.
Para Pedro Sérgio, “o direito à habitação é um direito constitucional, devendo ser respeitado acima de qualquer argumento técnico ou jurídico que viole a norma constitucional. Todavia, o Brasil vem assistindo diversas violações contra a ordem constitucional, perpetrados por quem deveria proteger a Constituição, justamente o STF.”
O devedor pode reaver o imóvel tomado?
Após a notificação de inadimplência, a lei prevê a possibilidade de purgação da mora. O banco leva essa dívida a protesto e notifica o devedor. A partir desse momento, o devedor tem a possibilidade de purgação da mora, que é o pagamento do valor inadimplente.
“Se ocorrer algum tipo de irregularidade neste procedimento, o consumidor pode recorrer ao judiciário a qualquer momento, tanto no sentido de tentar buscar uma tutela de natureza cautelar, a fim de evitar a perda do bem, ou se a perda do bem já ocorreu efetivamente, para que ele possa anular esse procedimento e nesse caso ser reintegrado na posse do imóvel e continuar com o pagamento das prestações”, afirma André Aidar.
Segundo ele, existem muitas alternativas jurídicas ao consumidor para que ele possa se proteger de qualquer arbitrariedade por parte das instituições financeiras.
“O Supremo não declarou que os bancos têm um poder absoluto de quando bem entenderem retomar esses imóveis. Existe um procedimento prévio, que é necessário e tem que ser feito dentro dos termos da lei, sob pena de gerar sua invalidade. Se o mutuário continuar não pagando após os 30 dias dado pela notificação, a propriedade plena do imóvel vai ser reincorporada ao banco e, a partir desse momento, ele já fica autorizado a vender este imóvel novamente, ou a financiá-lo novamente a outro mutuário, seja através desses leilões que são feitos constantemente pelas instituições financeiras, ou em uma relação direta com um novo cliente”, finalizou.