Sem vacinação pública, imunização privada causaria problemas, afirmam especialistas
10 janeiro 2021 às 00h00
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Sanitaristas afirmam que Programa Nacional de Imunização tem condições de vacinar toda a população brasileira sem requerer auxílio da rede suplementar
Na última semana, após a Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas (ABCVAC) informar estar negociando 5 milhões de doses com a farmacêutica indiana Bharat Biotech, responsável pelo imunizante Covaxin (ainda sem dados de eficácia divulgados), a possibilidade da vacinação contra a Covid-19 via clínicas particulares ganhou espaço no debate público. O anúncio foi feito nesta segunda-feira, 4, e suscitou respostas da Anvisa e do próprio presidente da República, Jair Bolsonaro, em live. Ao mesmo tempo, o tema deixa médicos sanitaristas e profissionais da epidemiologia preocupados.
Nenhum país cogitou publicamente a possibilidade de imunizar a população via iniciativa privada – mesmo os Estados Unidos, que não têm sistema público de saúde, prometeram doses gratuitas a todos. Na própria Índia, segundo reportagem do UOL, ao menos três grandes redes hospitalares privadas já se comprometeram a apoiar o plano de imunização do governo no que fosse necessário. Lá, foi levantada a possibilidade de venda na rede privada, mas a oferta só deve ocorrer após o início da campanha pública de vacinação.
A Organização Mundial da Saúde (OMS), por meio do consórcio Covax Facility, fomenta o desenvolvimento de nove vacinas. Formado por 184 países que concordaram em investir quantias variáveis de dinheiro em um fundo, o Covax Facility negocia apenas com governos a distribuição das doses dos imunizantes cuja eficácia e segurança forem demonstradas. O governo brasileiro entrou na iniciativa no dia 24 de setembro de 2020 por R$2,5 bilhões.
O cenário em que as vacinas estão disponíveis apenas em clínicas privadas se torna ainda mais improvável quando se considera que o imunizante Covaxin, em estudo pela indiana Bharat Biotech, ainda não apresentou dados da fase 3 de estudos clínicos. Mesmo que haja aquisição das doses por clínicas particulares, não há registro vacina pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) sem o protocolo clínico da pesquisa em seres humanos.
Em live na quinta-feira, 7, o presidente Jair Bolsonaro afirmou: “A gente não vai criar problema no tocante a isso daí. Quem quiser… Se uma empresa quiser comprar lá fora a vacina e vender aqui, quem tiver recursos vai tomar vacina lá. Agora nós vamos oferecer de forma universal, e da nossa parte não obrigatória.”
Sem vacinação pública
Extrapolando estes fatos e projetando um cenário em que a rede privada de saúde se mostrasse mais eficiente do que o Estado para disponibilizar as vacinas para a população, o que aconteceria? Dilemas éticos e legais surgiram, segundo Ethel Maciel, professora na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e doutora em Saúde Coletiva e Epidemiologia. A cientista afirma que o Brasil tem garantias constitucionais de que a saúde deve ser provida gratuita e universalmente a seus cidadãos, e lembra que muitas destas vacinas estão sendo produzidas com dinheiro público, em centros de pesquisa públicos.
Ethel Maciel afirma: “A vacinação é uma estratégia coletiva. Precisamos de uma grande proporção de pessoas vacinadas com a dose correta para controlar a circulação do coronavírus. Há problemas técnicos na vacinação privada, como a quantidade de doses: se uma pessoa só tiver dinheiro para tomar uma das duas doses necessárias para a imunização, a efetividade será afetada. É necessário monitorar efeitos adversos – como clínicas privadas fariam o acompanhamento dos vacinados?”
A pesquisadora levanta ainda outra questão: não seria justo que populações de risco ficassem vulneráveis à doença enquanto outras pessoas relativamente menos suscetíveis fossem vacinadas simplesmente porque podem pagar. “É claro que, depois de atingidas as metas para a proteção da população, não haveria nenhum problema se a vacina estivesse também disponível na rede particular. Mas até lá, o Estado tem o papel de centralizar e comandar o esforço para salvar o maior número de vidas possível, já que no Brasil a saúde é um direito de todos”, conclui a professora.
Desperdício de dinheiro
Mérces da Silva Nunes é doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Puc-SP) e já produziu livros e artigos na área do Direito Médico. A especialista afirma que não há qualquer impedimento legal que proíba clínicas particulares de disponibilizarem doses da vacina no Brasil – em situações normais a rede privada atua de forma suplementar e em conjunto com o Sistema Único de Saúde na vacinação contra diversas doenças infecciosas.
Entretanto, Mérces da Silva Nunes diz que, desde 1975, com o advento do Programa Nacional de Imunização (PNI), a obrigação de fornecer vacinas é do poder público. “O PNI foi uma vitrine para o Brasil; é referência de imunização no mundo todo. O país sempre distribuiu imunizantes gratuitamente para todos e, pela primeira vez, temos um entrave com a possibilidade de criar consequências muito negativas”, diz Mérces da Silva Nunes.
A jurista explica que, se a rede pública se omitisse da responsabilidade de fornecer vacinas, problemas sanitários e sociais seriam criados. “Me parece que criaríamos cidadãos de segunda classe, que não podem pagar pelas vacinas. Surgiriam bolsões de populações vulneráveis e problemas sociais graves. Sem uma estratégia, já que a iniciativa privada não é obrigada a obedecer cronogramas ou a atender apenas grupos prioritários, o número de pessoas imunizadas dada a eficácia da vacina poderia não atingir o patamar necessário para impedir a circulação do vírus. Poderia ser um grande desperdício de dinheiro.”
Pérola do SUS
A médica sanitarista Lígia Kerr é pós-doutorada nas áreas de Saúde Coletiva e Epidemiologia, além de ser professora na Universidade Federal do Ceará (UFC). A cientista levanta ainda outros problemas da imunização via rede privada: enquanto o plano de vacinação do governo obedece um cronograma e foca grupos estratégicos, é difícil reproduzir o método no sistema privado de saúde:
“Se ventila a ideia de seguir a mesma lógica da Lista Única atualmente utilizada para o transplante de órgãos. Esse foi um artifício criado para que os ricos não passem na frente dos pobres a despeito da gravidade dos casos. Mas no sistema privado é muito mais complicado garantir que essa lógica seja mantida, sem mencionar o trabalho desnecessário que poderia ser evitado pela vacinação pública”.
Lígia Kerr afirma que o poder público é mais eficiente na execução da imunização do que a rede privada. “A administração de vacinas pelo poder público é absolutamente rigorosa, pois há muitas regras a serem seguidas que, se descumpridas, acarretam no descarte das doses. A vacinação é responsável pela redução de 3 milhões de mortes por ano em crianças e as vacinas são produtos de altíssima qualidade. Quem fala contra suas vacinas tem uma profunda ignorância na área”, diz a cientista.
Lígia Kerr conta que nunca vacinou a si ou aos seus filhos em instituições privadas. “Lembro-me da desconfiança que encontrávamos anos atrás, como se o que fosse público não prestasse. Mas a experiência acumulada do PNI faz desse plano de imunização um dos melhores do mundo e nós temos estudos que comprovam isso. A desvalorização do programa de imunização faz parte de um jogo político absurdo – isso mostra a incompetência dos nossos dirigentes, que permitiram o descrédito de uma das pérolas do SUS”, afirma Lígia Kerr.
O Brasil depende do sistema suplementar em diversos setores da saúde, mas, na questão de imunizantes, este não é o caso, segundo Lígia Kerr. “Teríamos condição de vacinar toda a população brasileira sem requerer auxílio da rede suplementar. O PNI já está preparado para distribuir. O que falta é querer, falta vontade política no país.”