Chamar de tragédia um resultado que deveria e poderia ser previsto e evitado é o primeiro dos erros. O Brasil precisa, sim, achar e punir os culpados pelo fim de tanta vida

Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil
Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

Elder Dias

No vídeo, não é o rio. É a lama, é só lama. Com a cor daquela das enxurradas que solapam o monte de terra que transborda da calçada da obra, mas multiplicando-se o fenômeno em escala gigantesca. Na beira do leito tomado por aquele líquido estranho (não só dejetos de minério de ferro, mas mercúrio, alumínio, boro, chumbo, enfim, “a tabela periódica inteira”, como tristemente definiu um técnico) que um dia foi água, à margem daquilo que um dia foi um rio, estão cascudos, peixes tradicionais dos rios daquela região e considerados de alta resistência. Todos mortos. Suas carcaças ancoradas ali, abatidos por uma força incontrolável.

Então, o homem do vídeo apanha um dos peixes para esfregar na tela de quem o assiste. Faz um depoimento que exala revolta. No fim de seu registro, misturando dor e impotência, professa um juramento: “A Vale não vai tirar nem mais um quilo de minério em Minas Gerais. Nos aguardem!”. Vale a pena falar da Vale, a Vale do Rio Doce. A ela voltaremos daqui a pouco — o Rio Doce, este não voltará.

É que a cena dos peixes mortos remete a uma experiência de infância. A um tio que então morava em São Luís de Montes Belos, a 120 quilômetros de Goiânia. Mecânico por profissão, pescador por paixão. Em uma de nossas idas até lá, saímos com ele de vara e humilde tralha: eu, meus irmãos, meu primo e meu pai. Destino: Rio Turvo, a algumas dezenas de quilômetros da cidade. Pescar era um passeio com uma emoção dúbia: de me deliciar fisgando os peixes e de sentir dó por meu prazer os matar. Foi por esse sentimento que um dia, com uns 7 ou 8 anos, resolvi devolver à água os peixes recém-fisgados — considerando-me, desde então, um precursor da pesca esportiva.

Mas a cena que marcou aquela tarde no Turvo foi nada prazerosa e toda aterradora. No momento em pescávamos — meu tio à parte, porque ele não gostava de nenhum barulho por perto —, uma quantidade incontável de peixes, principalmente piaus, desceu boiando. Um cardume inteiro morto. Tio Umbelino chegou e disse: “É veneno de plantação. Vamos embora”. E, com o curso do imponente rio servindo de rota àquele cortejo imprevisto, acabaram-se passeio e pescaria.

No crime do Rio Doce não são apenas peixes que estão mortos. É o próprio rio e tudo o que vivia dele: fauna, flora, patrimônio e gente. Lugares e suas histórias — a igrejinha multissecular, o restaurante tradicional, a praça de conversas e namoros — perdidos para sempre no meio da lama. Corpos de dezenas de pessoas que nunca mais serão encontradas. Espécies endêmicas que foram extintas em questão de horas. Outras que terão dias contados.

Peixes mortos pela falta de oxigênio e excesso de substâncias venenosas: e o desastre ainda não chegou ao mar | Divulgação/UOL
Peixes mortos pela falta de oxigênio e excesso de substâncias venenosas: e o desastre ainda não chegou ao mar | Divulgação/UOL

A tsunami de lama varreu do mapa um povoado, Bento Rodrigues. Um vídeo produzido pela TV Cultura, com menos de cinco minutos de duração, mostra como costumava ser a vida no subdistrito de Mariana (MG). A data da postagem no YouTube é de 5 de maio, exatos seis meses antes do crime ecológico. Um cenário bucólico, pessoas simples, o estilo rural mineiro, que nós goianos conhecemos tão bem, gente focada em produzir, como meta mais ambiciosa, uma boa geleia de pimenta para venda. Como diz o jornalista Alceu Luís Castilho, responsável por divulgar esse vídeo logo após a destruição provocada pelo rompimento das barragens, um povoado que “sintetizava um modo de vida tão esquecido pela imprensa quanto os impactos sociais e ambientais do mundo corporativo”.

Assistindo aquelas cenas embaladas pelo ponteado de uma viola caipira, não dá para deixar de imaginar o que é uma imensa onda de lama de dejetos tóxicos passando por cima de tudo aquilo, de todas as casas, levando animais e histórias que pertenceram a tantas vidas. Passando mesmo por cima das vidas, sem qualquer metáfora — moradores para sempre desaparecidos. A trajetória dessas pessoas foi sepultada. É construir outra, do zero, ou perderem o juízo. Quem teria sangue frio para tanto?

Mais abaixo, no curso maldito da lama que só vai parar no mar, uma cidade de quase 300 mil habitantes vive seus dias de pós-guerra. Governador Valadares perdeu o acesso à água potável, como tinha ocorrido com mais sete cidades mineiras até a sexta-feira, 13. A perspectiva sombria ao ver lama e não água passar debaixo da ponte leva alguns ao desespero e outros à oração. Galões e garrafões são motivo de tumulto. Donas de casa buscam água como quem garimpa ouro. O que vale para elas não é o que vale para a Vale.

O capital e a notícia

Do outro lado das barragens rompidas, uma empresa chamada Samarco. Produtora de pelotas de minério de ferro para exportação — a 10ª maior exportadora do País em mineração. Hoje seu capital é controlado por duas gigantes do setor de extração. Uma é a anglo-australiana BHP Billiton, que também tem negócios no Chile, na Colômbia e no Peru, além de outros países pelo mundo. Já foi multada por envenenar com cobre as terras peruanas e já tinha no currículo uma grave contaminação fluvial em Papua Nova Guiné, na Oceania. A outra é a Vale S.A., privatizada em 1997 no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e hoje controlada pela Valepar, que tem 53,9% do capital.

Vítimas instaladas em um ginásio em Mariana: solidariedade não pode se tornar uma forma de desviar o foco | Daniel Marenco / O Globo
Vítimas instaladas em um ginásio em Mariana: solidariedade não pode se tornar uma forma de desviar o foco | Daniel Marenco / O Globo

Resta saber quem manda na Valepar: 49% estão em fundos administrados pela Caixa de Previdência dos Funcionários do Banco do Brasil (Previ); a Bradespar, do Bradesco, tem 17,4%; a multinacional japonesa Mitsui, que participa de marcas como Sony, Yamaha e Toyota, 15%; e o BNDESpar, 9,5%. Por trás de toda a confusão de nomes e marcas, a certeza de que há muitos interesses poderosos envolvidos. E aqui outra observação importante: a imprensa brasileira não tem a prática de fiscalizar corporações da mesma forma com que faz com os governos.

É intrigante saber os rumos por que caminham as notícias e informações em casos como este. Por que dar tanta atenção à solidariedade e aos casos dramáticos (que são incontáveis), em vez de buscar investir na investigação? O que leva um veículo a buscar certa palavra (e não outra) para nomear tal ocorrência?

Uma imprensa que não trabalha como deveria torna difícil o acesso da informação relevante aos mais leigos. Como saber a diferença entre uma notícia sensacionalista/alarmista e outra realmente grave? Não seria difícil identificá-las e separá-las. A sensacionalista, quando surge o fato inicial, aparece estampada em uma manchete, toma um bloco do telejornal e, nos dias seguintes, tem seu espaço reduzido drasticamente. Uma notícia grave, mas realmente importante em seus desdobramentos, vai ocupar as primeiras páginas dos jornais e estar na chamada inicial dos âncoras durante dias e semanas. Mesmo que, num primeiro momento, não tenha sido levada em consideração. Simplesmente não tem como os veículos de imprensa fugirem dela, ainda que eles — ou seus anunciantes poderosos — não a queiram.

Mesmo com tanto capital envolvido que vem de anunciantes como Bradesco, Banco do Brasil, Sony, Toyota e outros, o malfeito está lá, tomando conta da água corrente. O rio de lama que matou o Rio Doce insiste em não sair das primeiras páginas dos jornais brasileiros. Em muitos deles, já esteve lá como uma notinha, uma foto-legenda na “dobra de baixo” (a metade inferior da capa); em outros, principalmente de Minas Gerais e do Espírito Santo, não há como fugir de ser manchete.

Interessante observar como o principal diário mineiro, “O Estado de Minas”, estampou o caso na capa desde o rompimento das barragens de rejeitos de mineração da Samarco S.A., ocorrido na quinta-feira, 5. No dia seguinte, o jornal colocou como manchete: “Tragédia em Mariana – Barragem se rompe e tsunami de lama arrasa vilarejo”. A partir da quarta-feira, 11, a retranca que abre o título foi trocada: virou “Tragédia em Minas”. Um pouco mais de crítica trocaria “tragédia” por “crime ambiental” ou algo similar.

Depois do dano cometido, poucos políticos no País correram para saber mais sobre esses bastidores. Mas muitos correram da responsabilidade. O senador Aécio Neves (PSDB), ex-governador de Minas, disse que não é hora de buscar culpados. Qual será a hora para os políticos mineiros, se estão quase todos atolados até a tampa em compromissos velados ou nem tanto com as mineradoras, que financiaram a campanha de toda uma bancada parlamentar?

A presidente Dilma Rousseff (PT) demorou uma semana para seguir até a região atingida. Com­portamento totalmente equivocado, que não repetiu na nota de repúdio ao atentado a Paris, na sexta-feira, 13, emitido minutos depois de confirmada a ação terrorista. Seria mais fácil enxergar a desgraça alheia do que a própria? Era hora de ao menos se postar como liderança, ainda que tenha dificuldade com isso.

O rabo preso de deputados e senadores fica nítido ao notar que uma comissão parlamentar de inquérito (CPI) na Assembleia mineira para apurar o caso acabou abafada ainda com a lama escorrendo. Mais ainda ao ver o quanto cada partido recebeu, como doação de campanha, da Vale S.A. em 2014: do total de R$ 22,650 milhões, o PMDB — que controla o Ministério de Minas e Energia — ficou com R$ 11 milhões; o PT e o PSDB, com R$ 3,1 milhões; o PSB, com R$ 1,5 milhão; até o PCdoB se rendeu ao capital da Vale, embolsando R$ 1,1 milhão. Abaixo do milhão de reais, foram beneficiados com verbas da empresa também PP, Solidariedade, PPS, PSD, PR e PRB. Os dados foram divulgados pelo deputado Jean Wyllys (Psol-RJ), um dos poucos partidos que escaparam da lista. Não é à toa que outro deputado da sigla, o carioca Chico Alencar, seja também um dos que pedem punição. Bingo: assim explica-se à população mais despolitizada por que financiamento privado em um país como o Brasil serve para cobrir um mar de lama. De forma literal.

Banner virtual apresenta lista dos partidos que mais receberam doações de campanha da Vale em 2014; PMDB tem o Ministério das Minas e Energia
Banner virtual apresenta lista dos partidos que mais receberam doações de campanha da Vale em 2014; PMDB tem o Ministério das Minas e Energia

Não foi acidente. Não foi uma “tragédia”. Acidentes e tragédias assim o são quando o imponderável acontece: um ataque cardíaco no motorista do ônibus, um raio, um terremoto, um meteoro que cai. Não dá para falar em “acidente” quando havia laudos que alertavam para o comprometimento de várias barragens como as que ruíram, inclusive as próprias. Faltou fiscalização do poder público e sobrou negligência das empresas, sempre ávidas em lucrar o máximo e quase nunca animadas a gastar com o que pode “ficar para depois”.

A morte do Rio Doce, já dada como oficial por órgãos técnicos, é o maior crime ambiental da história brasileira. Basta dizer que é a primeira vez que uma bacia hidrográfica — totalmente formada na Região Sudeste — fica com seu principal manancial totalmente destruído.

Perto do que ocorreu em Minas, o “acidente” radiológico de Goiânia, com o césio 137 — um aparelho abandonado em meio a entulhos — é incrivelmente pequeno. Como goianiense, vivi nossa tragédia bem de perto. Lembramos todos nós do medo (eu era office-boy do escritório do meu pai e passava de ônibus quase todo dia perto de alguns dos pontos de contaminação). Os efeitos do césio, sabemos, foram terríveis para todos nós, mas principalmente para as famílias das vítimas e os militares que trabalharam diretamente. Mas, 28 anos depois, tudo ficou circunscrito ao estigma e ao depósito radioativo de Abadia. Se houve algo mais, ainda não ficou provado.

O caso que envolve a gigante multinacional Vale S.A. é muito mais abrangente e até o momento incontrolável. As consequências são imprevisíveis. Mas basta imaginar que o fornecimento de água de uma vasta região de Minas Gerais e do Espírito Santo foi cortado sem prazo para retorno para ter noção da gravidade. A imprensa, pouco crítica por vício próprio e um tanto de comprometimento econômico, prefere valorar o viés do drama e da necessidade de solidariedade. Não é a melhor informação de que precisamos.

Por ironia, na música do fone de ouvido enquanto escrevo este texto, a aleatoriedade do YouTube deixa rolar uma canção romântica do Maná: “Te Lloré Todo um Río”. “Chorar um rio inteiro”, deixar cair uma torrencial nuvem de lágrimas. É pouco mais do que isso o que podem fazer um senhorzinho de Bento Rodrigues ou uma dona de casa de Governador Valadares.

Sendo místico ou cético, as imagens do crime da Vale/Samarco são a materialização de um quadro: a violência das consequências (dejetos) do acúmulo do capital sobre os menos favorecidos. Aqueles que dele nunca usufruíram são os mais afetados. A natureza, em algum momento, cobra a fatura de todos. E chegou a hora. O Brasil teve de arcar com um rio inteiro desta vez. É pouco falar em crime de lesa-pátria. É algo que atenta contra o mar e, por ele, em seu caráter universal, contra a humanidade. Quem é que vai pagar por isso? E como vai pagar?