Presença de mulheres em aplicativos de transporte quebra estereótipo de “profissão masculina”
16 fevereiro 2020 às 00h01
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Inseridas no mercado dos serviços populares de transporte e entrega de comida, elas vêm ganhando destaque e rompendo as barreiras de gênero na profissão
Em um episódio da famosa série norte-americana Os Simpsons, Marge, a matriarca da família, descobre que tem dotes para a carpintaria. Entretanto, apesar das demonstrações de excepcional talento, ela ouve contínuas negativas de clientes por um único motivo: Marge é mulher. Há, inclusive, uma cena em que ela chega a dizer que tem a impressão de que as pessoas esperam que um carpinteiro seja sempre um homem de grande porte “com o cofrinho aparecendo”. Mesmo se tratando de apenas uma personagem de desenho, Marge evidenciou, ali, uma infeliz e palpável realidade: até os dias de hoje, a presença feminina em certos ambientes profissionais é questionada e vista com estranheza. Entretanto, não conclua precipitadamente que elas se conformam com o problema. A dúvida de base machista parece estar sendo o combustível para o desbravamento das mulheres em áreas em que, rotineiramente, só se viam homens atuando.
Para se ter uma ideia da dimensão do avanço de inserção da mulher em áreas antes vinculadas ao universo masculino, segundo microdados do Censo de Educação Superior/INEP, a presença feminina em cursos como o de Mecânica – onde prevalece o público masculino – era de apenas 1,2% em 2009. Em 2015, a porcentagem de mulheres que resolveu, literalmente, “colocar a mão na graxa” subiu para 7,5%.
Entre as áreas que surgiram com predominância masculina mas que, com o passar do tempo, começaram a sentir o impacto do desempenho feminino estão os aplicativos de transporte e de entrega de comida. Desde que começaram a se popularizar, há alguns anos, a quantidade de mulheres em aplicativos como Uber, iFood e outros do tipo era desproporcionalmente masculina. Porém, esse cenário tem evoluído gradativamente e, hoje, o destaque que elas têm adquirido nesse ambiente profissional é inegável.
Conquista profissional
A contadora e motorista de aplicativo Luciana Campos é uma prova viva disso. A goianiense de 40 anos tem uma história de conquista profissional numa área “governada” por homens de dar inveja a qualquer coach ou palestrante da área. Luciana começou a trabalhar como motorista da Uber há apenas nove meses e, nesse ínterim, já foi coroada com o título de primeira mulher cinco estrelas do Centro-Oeste, ganhando uma premiação em dinheiro da empresa de R$ 5 mil. Luciana conta que Goiânia tem a atuação de, aproximadamente, 20 mil motoristas do aplicativo Uber e que, desse número, a quantidade de condutores que obtiveram a mesma premiação – todos homens – não passa de 30.
Luciana atribui o êxito ao seu estilo de atendimento dentro do aplicativo. “A Uber tem um critério de avaliação rígido, e não é fácil obter essa pontuação. Mulher nenhuma no Centro-Oeste tinha conseguido, eu sou a primeira. O fato de eu ter conseguido é gratificante, porque todo mundo que também conseguiu não vivia só de ser motorista de aplicativo, e eu sim. Eu posso destacar meu padrão de atendimento. Procuro sempre ser muito profissional, educada, eu foco no meu profissional”, conta.
Ela revela que já tem em sua conta mais de 4.400 viagens pela Uber, e ainda trabalha em outro, o 99 Pop. Luciana revela que toda a sua renda vem dos aplicativos, e que trabalha cerca de 14 horas por dia para poder sustentar sua família – sua filha de 6 anos e sua mãe, já aposentada.
Apesar de hoje comemorar o realce na profissão, o caminho trilhado por Luciana não foi nada fácil. Ela, que além de contadora é também especialista em gerenciamento de projetos, relata que até o ano de 2014 ocupava o cargo de diretora concursada da folha de pagamento do Estado do Tocantins. Todavia, sua vida sofreu uma reviravolta quando a filha pequena, Maria Julia, teve um Acidente Vascular Cerebral (AVC) infantil, ficando em estado clínico gravíssimo. Foi quando Luciana tomou uma decisão que mudaria seu futuro. “Eu fui concursada por 14 anos [no Tocantins]. Quando aconteceu isso com a minha filha, eu vi que ela precisava muito de mim. Eu tirei uma licença e vim pra Goiânia, para ficar com a minha mãe e fazer o tratamento da minha filha. A licença acabou e pedi outra. Fui ficando de licença até o ponto que não dava mais. Foi quando pedi exoneração”, relembra.
Laranjinha gourmet
Luciana narra que, de volta a Goiânia e sem fonte de renda, começou a apelar para diferentes tipos de ocupação para poder pagar as contas. “Fiz laranjinha gourmet para vender. Depois de um tempo, meu pai montou uma lanchonete pra eu tomar conta, onde eu trabalhava das cinco da manhã até dez da noite. Mas acabou não dando certo”, diz. Foi então que seu pai fez a proposta que culminou, hoje, em sua satisfação profissional. “Ele conversou comigo e se ofereceu pra comprar um carro, que ele pagaria metade eu pagaria a outra metade, para eu trabalhar como motorista de aplicativo. Comecei e estou até hoje!”.
Contudo, mesmo já adaptada em sua área e conquistando seu espaço, a ex-concursada revela que já sentiu o machismo na pele. Luciana, que é divorciada, conta que já foi interpelada com questionamentos sobre seu marido, afazeres de casa e até sobre sua filha. “Já ouvi muito ‘Vai pra casa cuidar da sua filha, Luciana’, ou ‘Cadê seu namorado, Luciana, você tem que arrumar um namorado’. Eles não entendem que eu é que sustento minha casa. Minha filha, quando não está na escola, está com a minha mãe, e eu, com meu trabalho, que dou tudo pra ela. Eles não entendem que uma mulher possa trabalhar tanto ou mais que eles”, afirma.
Mesmo com o surgimento de aparatos e recursos de prevenção e denúncia que auxiliam na realização segura das viagens, os profissionais da área de aplicativos de transporte ainda estão sujeitos a riscos e situações de insegurança. Quando se é mulher, segundo Luciana, esse risco é dobrado. Ela relembra uma corrida em que precisou de ajuda de seu grupo de amigos da Uber para sair de uma situação que, conforme a motorista, a amedrontou. “Teve uma vez que um passageiro entrou no meu veículo, no finzinho da noite, e ele estava com um jeito muito estranho. No meio da viagem, ele mudou a rota e eu comecei a ficar com bastante medo. Daí eu comecei a falar com meu grupo pelo rádio, e eles falavam que estavam monitorando minha viagem, que estavam vendo minha rota. Ouvindo aquilo, o passageiro ficou nervoso e desceu antes de chegar ao destino”.
Entretanto, casos de sucesso na conta de Luciana estão em maior quantidade, e ela não se deixa abater. A motorista revela que contou, e conta, com amplo suporte de seu grupo de motoristas e da própria Uber que, segundo ela, acolhe abertamente e oferece auxílio às mulheres que aderem à plataforma. Luciana segue sólida na profissão que escolheu e também no tratamento da filha Maria Julia, que apresentou grandes avanços em seu quadro de saúde. A pequena, que ainda passa por fisioterapia frequentemente, estuda, faz balé, vai às compras com a mãe, vive sua vida normalmente.
Quanto às mulheres que planejam entrar no mercado do transporte por aplicativo, Luciana dá a dica: “Eu diria para a colega que estão começando que procure falar com os colegas que têm mais experiência, entrar em grupos de WhatsApp, assistir tutoriais no YouTube, nunca rodar sozinha e nunca fazer algo que o coração não esteja pedindo. A Uber não obriga a gente a aceitar corridas. Se você recebeu um pedido de corrida e você não se sente bem, não aceite”, finaliza.
Nos aplicativos de transporte de comida, idade não é empecilho
No início de 2018, Eliane Valim, hoje aposentada, ainda não havia sido contemplada com a finalização do processo que concede a ela o benefício. Desempregada, Eliane, que é natural de Uruana mas reside em Goiânia, começou a maquinar alguma forma de voltar a obter a própria renda. A filha apresentou a solução: emprestaria o carro para que a mãe pudesse trabalhar como motorista de aplicativo.
A inscrição no aplicativo foi realizada, mas a demora na resposta da análise dos dados fez com que a mulher procurasse a unidade física do aplicativo. Ela, que tem paixão por passeios de bicicleta – ela utiliza o veículo de duas rodas há 15 anos -, chegou ao local segurando o capacete de segurança, e a pequena confusão da atendente iluminou suas expectativas. “Entrei com o capacete na mão para perguntar se meu cadastro tinha sido aprovado, e quando ela me viu, disse que pensou que eu tinha me cadastrado no aplicativo de entrega de comida, não no de transporte. Foi aí que eu tive a ideia”, lembra. No mesmo dia, Eliane, que está prestes a completar 63 anos, começou a trabalhar pedalando em sua bicicleta elétrica e entregando pedidos de sanduíches, bolos e pizza ao redor da cidade.
Por um ano, Eliane batia entre 40 e 50 quilômetros por dia entregando comida pelo aplicativo. Ela conta que só parou, em abril do ano passado, devido ao rompimento de um tendão do ombro, que a obrigou a passar por uma cirurgia. “Mas não foi por causa da bicicleta. Tem a idade, né. Foram anos trabalhando de diarista, em escritório, de várias coisas”, justifica.
Ela conta que controlava com disciplina seu horário como entregadora: trabalhava das 11h às 15h e das 18h até por volta de meia-noite, todos os dias – exceto às terças, quando tirava sua folga. Segundo Eliane, as pessoas ficavam intrigadas quando a viam trabalhando naquela área, e ganhou até um apelido carinhoso: a “senhora da bicicleta”.
A aposentada se recorda de diversas situações em que as pessoas que recebiam a entrega ficavam impressionadas ao verem aquela senhora ali, trajada com equipamento de segurança para bicicleta e com o lanche solicitado na mão. Uma situação em específico a marcou, que foi quando teve que fazer uma entrega de longa distância numa noite de chuva. Hoje, Eliane vê como uma aventura. “Fui entregar uma comida do Setor Oeste até o Condomínio Eldorado [em Goiânia]. Estava muito escuro e chovendo demais e eu tive que passar por ruas cheias de buraco. Cheguei com a maior dificuldade na casa. Quando o rapaz que fez o pedido me viu, ele ficou assustado e perguntou ‘Mas é a senhora que está fazendo a entrega?’. Respondi que era eu sim. Ele pediu pra eu esperar um pouco e voltou com uma gorjeta bem maior do que eu iria ganhar pela entrega!”, relembra.
A ex-entregadora de aplicativo também chama a atenção para o aumento de mulheres atuando na área. Segundo ela, quando começou a trabalhar com as entregas, raramente via uma colega percorrendo a cidade para entregar comida. Porém, uma evolução foi sentida por ela. “Quando saí, já estava cruzando com várias meninas em bicicletas e entregando lanche”, diz.
Eliane afirma categoricamente que, se pudesse, “voltaria tranquilamente” a trabalhar com as entregas. E não hesita em enaltecer o valor daqueles que, faça chuva, faça sol, batem na porta do usuário de aplicativo para entregar seu pedido. “É uma profissão digna demais. Eu diria que o trabalho digno é a gente que faz, mas esse trabalho de entrega te dá uma liberdade, sabe. É, foi o melhor emprego que já tive”, arremata.
Uber oferece facilidades para mulheres que desejam ingressar na empresa
No ano passado, a Uber criou a plataforma Elas na Direção, com o objetivo de propiciar a inclusão mais abrangente do público feminino entre seus motoristas. O projeto, que começou em outubro de 2019 em formato piloto em Campinas, Curitiba e Fortaleza, conta com planos de expansão para todo o Brasil em 2020.
Segundo a empresa, para dar uma força a mulheres que querem se tornar motoristas parceiras, mas não têm veículo próprio, fechou uma parceria com a Localiza Hertz para que a locadora ofereça condições exclusivas nas três cidades-piloto do projeto: às mulheres que se cadastraram na Uber, mas que nunca realizaram uma viagem, a Localiza oferecerá acesso ao aluguel de um carro com um preço inferior ao valor regular da categoria.
Para facilitar ainda mais o acesso ao produto, pela primeira vez, não será exigido um cartão de crédito desse público para efetuar o aluguel.
Ainda conforme a Uber, o projeto Elas na Direção vai contar também com uma plataforma educativa que oferecerá cursos online sobre empoderamento pessoal e econômico, desenvolvidos em parceria com a Iniciativas Empreendedoras, a Rede Mulher Empreendedora e a economista Gabriela Mendes, fundadora da NoFront – Empoderamento Financeiro.
A plataforma ainda vai oferecer uma rede de apoio com especialistas mulheres fazendo atendimento presencial, de mulher para mulher, nos Espaços Uber das cidades-piloto do projeto. Por fim, serão realizados encontros presenciais, em parceria com a Rede Mulher Empreendedora e com as atuais motoristas parceiras do app, com conteúdos sobre empoderamento pessoal e oportunidades de ganhos.
Mulher tem avançado no mercado de trabalho, mas machismo ainda é presente, diz conselheira da OAB
As políticas de inclusão feminina no mercado de trabalho, adotadas pelo governo e por empresas privadas, e as campanhas de conscientização contribuíram para um avanço da mulher no que tange à ocupação de postos de trabalho. É o que diz a advogada, conselheira da Ordem dos Advogados do Brasil – Seção Goiás e presidente da Comissão da Mulher Advogada, Ariana Garcia.
Para ela, considerando o quadro geral, é “inegável que a mulher tenha avançado muito”, e em alguns setores já são elas que dominam. “O espaço no mercado de trabalho tem sido aberto para a mulher, e algumas áreas já têm predominância feminina. Área tecnológica, por exemplo. Nas escolas de computação, a mulher tem muito mais vocação para esse tipo de setor. Quando a gente escuta dizer que o ambiente [tecnológico] é bem mais masculino, é porque as pessoas associam a tecnologia ao homem”, afirma.
Entretanto, segundo Ariana, ainda há obstáculos a serem vencidos e o machismo é um deles. De acordo com a conselheira e presidenta da comissão da OAB, esse é um problema que ainda segue sólido na sociedade. A advogada explica que a presença da mulher em espaços onde a atuação feminina é escassa pode acarretar situações sexistas. “Infelizmente o machismo é muito presente, em todos os aspectos. É uma questão cultural, que se insere em todos os contextos, não só o profissional. Quando a mulher está em um ambiente de trabalho que não é comum se ver a presença da mulher, podem ocorre situações de machismo. E o machismo não só predomina na avaliação de mulheres nesses espaços menos comum para elas, como na dos outros [homens]”, avalia.
Apesar dos pesares, a análise de Ariana leva a crer que o próprio processo civilizatório tem contribuído para que a mulher abra os caminhos da autonomia e das conquistas profissionais. “A mulher tem passado por um processo de empoderamento há muitas décadas, ela não tem mais o papel definido pela sociedade tradicional. Por causa do processo de empoderamento que tem acontecido há muitas décadas, ela tem se conscientizado mais do potencial que ela tem, e que não há papéis só para mulheres ou só para homens”, conclui.