Se adotado, modelo seria um desastre à próxima legislatura, diz cientista político. Em pauta, também a adoção do sistema de federação, o financiamento de campanha e o voto impresso

Plenário da Câmara dos Deputados, onde se discute o modelo eleitoral conhecido como distritão | Foto: Divulgação

Ainda que pareça longe, marcada para 2 de outubro de 2022, as próximas eleições federais já são pauta de discussão dentro dos partidos, nos veículos de comunicação e, principalmente, dentro do Congresso Nacional. Apesar de o foco atual há mais de um ano ser o combate à pandemia da Covid-19, em respeito ao artigo 16 da Constituição Federal, que determina que qualquer lei que altere o processo eleitoral precisa entrar em vigor um ano antes do pleito ao qual se aplicará – no caso, até 2 de outubro de 2021 –, para ter vigência no processo eleitoral, nomes passam a ser cotados, alianças, a serem delineadas e novas opções, a ser cogitadas.

O desejo pela mudança, por exemplo, fez com que uma comissão especial fosse instalada, na Câmara dos Deputados, em 4 de maio, com o objetivo de efetivar uma reforma política por meio da alteração do sistema eleitoral, em prol da instalação do chamado “distritão”. Atualmente, há duas formas de se eleger um político no Brasil: por eleições majoritárias, para Executivo (o que inclui o presidente da República, os governadores e prefeitos) e Legislativo, no caso do Senado; e por eleições proporcionais para o Legislativo, no caso de deputados federais, estaduais e vereadores.

Enquanto nas eleições majoritárias o candidato, para ser eleito, precisa ter mais de 50% dos votos válidos (com exceção ao senador, que é eleito por maioria simples, sem segundo turno), as eleições proporcionais determinam a quantidade de vagas a partir do quociente eleitoral (QE), que é o resultado da divisão do número de votos válidos pela de cadeiras disponíveis. Desse modo, com o sistema atual, durante uma eleição, o cidadão pode votar tanto no partido quanto no candidato.

Em 2019, ano de início do mandato do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e do governador do Estado de Goiás, Ronaldo Caiado (DEM), mais precisamente no dia 1º de fevereiro, já com a intenção de trabalhar em prol dessa reforma política, passou a vigorar a chamada cláusula de barreira, medida estabelecida pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) com a intenção de reduzir a quantidade de partidos. Até aquele ano, existiam 35 partidos registrados no TSE. Três foram extintos – PRP (englobado pelo Patriota), PPL (incorporado ao PCdoB) e  PHS (que foi abrangido pelo Podemos). Com o registro definitivo da Unidade Popular (UP), hoje o Brasil tem 33 partidos.

A cláusula de barreira, apesar de ter passado a valer em 2019, fez parte da chamada “minirreforma política” aprovada pelo Congresso Nacional em 2017 durante o governo de Michel Temer. No entanto, por ter se tratado de uma proposta de emenda à Constituição (PEC), diferente de outros pontos, como a criação do fundo eleitoral com recursos públicos para financiar candidaturas (que já passou a vigorar nas eleições do ano seguinte), a cláusula de barreira não teve a sanção presidencial.

Professor e presidente estadual do PSD, Vilmar Rocha: “Os partidos estão desgastados, mas têm um papel importante a cumprir na democracia representativa” | Foto: Reprodução

Desse modo, o professor de Direito e presidente estadual do PSD, Vilmar Rocha, explica que, quando se tratam das eleições legislativas, o sistema proporcional valoriza os efeitos da cláusula de barreira. “Na democracia representativa em todo o mundo, a organização da política e das candidaturas é um papel dos partidos. Eles estão desgastados, mas têm um papel importante a cumprir na democracia representativa. Em consenso, o cientista político Guilherme Carvalho explica que, com o sistema político atual, o cenário que se tem é o que os partidos escolhem seus candidatos e não ao contrário, de modo que a cláusula barreira somente estancou a multiplicação partidária.

No colegiado da Câmara, presidido pelo deputado Luis Tibé (Avante-MG), a proposta é relatada pela deputada Renata Abreu (Podemos-SP) e visa fazer valer o distritão, que torna eleitas as candidaturas mais votadas, sem a necessidade do QE. Pela grande divergência de opiniões quanto ao sistema eleitoral em vigor e uma mudança para o distritão, a comissão causou polêmica entre os parlamentares desde sua primeira reunião, no início de maio.

Ao considerar esse contexto de reformas políticas que se molda desde o governo Temer (2016-2018), o cientista político Guilherme Carvalho diz que o distritão traduz o anseio de políticos que temem não serem reeleitos, dado o fim das coligações proporcionais, algo que também foi decidido em 2017. “A reforma do governo Temer não alterou a lógica de escolha, mas mudou a dinâmica quando se entregou aos partidos uma grande força. Com a própria cláusula barreira, em que os partidos pequenos tendem a sumir ou ser englobados pelos maiores, o momento atual é de pânico entre os deputados que não têm votos e sobreviveram na política puxados [por outros]”, explica o cientista político.

Cientista político Guilherme Carvalho: “O distritão acaba com o espírito republicano; ao invés de 33 partidos, teríamos 513” | Foto: Arquivo pessoal

Assim como Guilherme, por considerar o distritão personalista, Vilmar e o deputado federal José Nelto (Podemos) também discordam do novo modelo a ser implantado. “Vai ser um tiro de morte na consolidação e na autonomia dos partidos políticos, ao passar a ter candidatos mais individualistas. Os votos serão deles, não do partido. Não será preciso de legenda para ser eleitos, de um grupo para ser votado. Isso vai aumentar o individualismo, personalismo e descompromisso. Vai exacerbar o personalismo e o individualismo. A pessoa vai ser dona do mandato, sem precisar dar satisfação a nada”, esclarece.

E para Vilmar, as consequências do distritão são desastrosas: “vai exacerbar a representação classista, aumentar o número de gente que não representa o povo, mas sim segmentos que elegeram o candidato, como sindicatos e igrejas”, acrescenta o professor.

O cientista político Guilherme, concorda, ao dizer que uma vez que grandes personalidades tomam conta do cenário, acabam o tornando mais populista e midiático. “Isso tira dos partidos o mecanismo de representar bandeiras, perde-se o fio da meada dos grandes problemas e acabam tratando temas públicos como um Domingão do Faustão“, opina Guilherme.

A relatora do projeto, no entanto, não acredita que o temido personalismo presente no distritão seja muito distinto do que se encontra atualmente em vigor no Brasil. “Qual a diferença de hoje? Hoje existe uma cultura no Brasil de se votar em pessoas. O sistema de lista aberta já favorece o personalismo, o distritão não vai mudar isso. O único sistema que fortaleceria partidos de fato seria a lista fechada (com as pessoas votando no partido), então não entendo em que o sistema distritão, na questão de favorecer o político, tenha alguma distinção em relação ao sistema atual”, pontua Renata.

Deputada Renata Abreu (Podemos-SP), favorável ao distritão: “Existe uma cultura no Brasil de se votar em pessoas” | Foto: Câmara dos Deputados

Abreu, inclusive, pontua que diferentemente do que é criticado, o distritão impedir ou não a renovação política consiste em algo relativo. “Se você observar, por exemplo, os deputados que se elegeram sem puxadores de voto e que representaram a renovação política, como Tabata Amaral (sem partido), Kim Kataguiri (DEM) e Joice Hasselmann (sem partido), aqui de São Paulo, todos teriam voto para se eleger no distritão. No sistema atual, se você tem um candidato de oposição e ele depende de uma chapa, a chance de o governo esvaziar a chapa e impedir a renovação é ainda maior”, afirma a relatora.

O deputado José Nelto (Podemos-SP), apesar de não apoiar o distritão, também não apoia o sistema atual e, inclusive, representa uma outra faceta atual do Congresso Nacional, que nos bastidores discute o interesse no modelo chamado “federação”. “Hoje, em qualquer partido, você tem de formar chapa, bancar sua campanha e ter 25 idiotas laranjas para eleger você. Se no meio da campanha alguém desiste, acaba com a chapa. Com isso, o atual modelo acaba com os partidos políticos. Com ele, vão sobrar no máximo quatro ou cinco para disputar as eleições [futuramente], o que será muito ruim para representatividade política do Congresso Nacional, que vai perder muitas cabeças pensantes”, diz.

Nelto ainda explica que a possibilidade das federações se faz viável frente ao polarizado cenário que desde as eleições de 2018 se faz tão polarizado “entre a esquerda e a direita”. “Nós que somos centro-desenvolvimentistas estamos procurando um candidato, um grupo que é da boa politica e que quer governar sem estresse. Que quer trabalhar de verdade, passar as reformas que o Brasil precisa”, afirmou. Segundo ele, atualmente esse grupo conta com o MDB, DEM, PDT, Podemos, PV e Cidadania.

Apesar de ser contra, Vilmar considera a federação de partidos como uma espécie de flexibilização da chapa pura por partido, que admitiria uma coligação proporcional, com voto de legenda nos partidos que estejam dentro da federação. “Levamos anos para estabelecer a cláusula de barreira no Brasil, que impede o partido de obter fundo eleitoral caso não alcance o número de votos e vai ser exatamente com essa redução que se irá aumentar a funcionalidade do processo legislativo. É mais fácil negociar com cinco ou seis partidos do que com trinta”, afirma.

“Na eleição de 2022, por conta da cláusula de barreira, devemos reduzir de 33 partidos para uma margem de 24, com de 10 a 12 tendo representação no Congresso”, esclarece Vilmar, sem deixar de ressaltar: “Se isso for flexibilizado [por exemplo, com a federação de partidos], permitindo esses atalhos, vamos ir contra esse projeto de redução”, pontuou. Ainda como uma proposta alternativa, para o cientista político Guilherme, um modelo misto entre o distritão e o proporcional seria sem justificativa e provocaria ainda mais confusão.

Façam suas apostas

Congresso tem até 2 de outubro para aprovar mudanças| Foto: Reprodução

Com o prazo apertado de pouco mais de cem dias até a data-limite para as mudança visando as eleições de 2022, no entanto, o presidente estadual do PSD, Vilmar Rocha, não acredita na possibilidade de acontecer mudanças substantivas no sistema eleitoral, descartando tanto o distritão como a federação de partidos. “Não temos um tempo grande. Qualquer projeto que queira modificar algo tem de ser aprovado tanto pela Câmara quanto pelo Senado, então creio que se manterá o quadro atual. Se algo passar, será uma mudança leve, adjetiva”, acrescentou.

Já os deputados Renata Abreu e José Nelto se mantêm mais otimistas. Isso porque, para Nelto, o Congresso Nacional é um local onde tudo pode acontecer. “Tanto o distritão quanto a federação têm chance de passar. A aposta da semana, no entanto, é o distritão”, afirmou. O cientista político Guilherme Carvalho, apesar de ver chance de o distritão ser aprovado, acredita que, para isso acontecer, vai demandar “grande sintonia entre a Câmara e o Senado”. Se der certo, no entanto, não vê as consequências como positivas.

Deputado José Nelto: Com o atual modelo, vão sobrar no máximo quatro ou cinco partidos para disputar as eleições” | Foto: Câmara dos Deputados

“Essa proposta já tramitou duas vezes e nas duas vezes foi derrotada no plenário, então não sei se prosperaria. Mas para 2022, caso o modelo seja adotado, isso significaria um desastre à próxima legislatura. Provavelmente teríamos um show, com a bancada das selfies, ao invés das temáticas. Parlamentares que só jogam com uma logica midiática e não propositiva, isso de modo geral acaba com todo o espírito republicano da coisa; ao invés de 33 partidos, teríamos 513″, afirmou Guilherme. Para ele, na verdade, a forma como a legislação eleitoral se encontra no momento “não é para ser mexida até 2033”. “Tivemos uma boa reforma em 2017, não tem por que mexer agora, só temos de deixar ela ganhar espaço”, afirmou.

Financiamento e voto impresso
Outros pontos específicos que também foram alvo de polêmica dentro da reforma política e que, no entanto, parlamentares não veem real alteração em seu quadro, são quanto ao financiamento de campanha – que nem está sendo discutido na comissão especial – e o voto impresso.

Nelto explica que, quanto à forma de financiamento, não há clima para mudança e, mesmo que houvesse, voltar para a iniciativa privada geraria um grande desgaste. “O fim do financiamento privado foi um avanço para o País, acho difícil retroagir”, pontua Renata Abreu.

Já quanto ao voto impresso, que tem uma comissão específica para isso, comandada pela deputada federal Bia Kicis (PSL-DF), Vilmar também não vê futuro na proposta. “Eu acho que o próprio governo sabe que não vai passar, não tem tempo mais para mudar. É muito caro e muito complicado alterar toda a estrutura atual pra permitir o voto impresso. Isso é apenas uma estratégia populista do governo para manter sua base mobilizada. Uma das grandes características de um líder populista é essa, manter sua base permanentemente mobilizada, contra alguma coisa, ‘odiando’ alguém – no caso, as urnas eletrônicas”, disse o professor.