Ycarim Melgaço é graduado em Direito pela Universidade Federal de Goiás (UFG), mestre e doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP). Em sua carreira, passou mais de uma década no mercado de trabalho do Turismo enquanto fazia concomitantemente pesquisas acadêmicas. Isso lhe deu uma compreensão múltipla da gestão do território e do funcionamento das empresas no setor.

Ycarim Melgaço também se dedica à comunicação sobre engenharia, tecnologia, e bastidores das empresas aéreas e de turismo em seu canal no YouTube e perfis nas redes sociais. Atualmente, orienta e desenvolve pesquisas na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (Puc-GO) na área de Geopolítica, Sistemas de Combate à Corrupção (Business Ethics) e Compliance, além de ser pesquisador parceiro do International Anti-corruption Academy, Laxenburg-Áustria.

Italo Wolff – Por que o senhor se interessou por estudar o Catar?

Ycarim Melgaço – A rápida ocidentalização e desenvolvimento do lugar. O Catar, os Emirados e outros países da região têm origens em tribos nômades que viviam de subsistência até um passado relativamente recente. De uma hora para outra, aparece uma estrutura urbanística altamente sofisticada. Meu interesse vem da questão “de onde surgiu o interesse geopolítico por esse lugar inóspito?”. É uma coisa que desperta a atenção, o contraste do desenvolvimento ocidentalizado com as imagens bucólicas de caravanas de camelos atravessando o deserto.

Para compreender a questão fiz um levantamento da literatura da Geografia até Economia, da Política e História até a Administração Corporativa. Você não consegue entender o Catar sem uma abordagem sistêmica, multidisciplinar. Um geógrafo pode compreender parte do todo, mas sem entender o planejamento estratégico das organizações daquele país, fica sem o que tem guiado suas decisões geopolíticas.

O senhor tem dito que o Catar não é um país, é uma empresa. Por quê?

Eu vejo o Catar como uma grande empresa bem estruturada. É menor que o menor estado brasileiro, Sergipe. Tem três milhões de pessoas, mas apenas 10% são cidadãos cataris, moradores de fato. Apenas uma família (Al Thani) domina a região há muito tempo, colocados no poder pelos ingleses que nomearam emires antes da independência do país. 

A família Al Thani tem hoje cerca de 8 mil membros e agregados e determina rumos políticos como os gestores de uma empresa familiar. O principal produto dessa empresa é o gás natural, e o segundo maior o petróleo. Nessa comparação, o Catar seria uma empresa petroquímica; as demais empresas do país recebem via Estado os investimentos advindos do gás e petróleo. 

Emir do Qatar, Sheikh Tamim bin Hamad al-Thani (direita) and seu pai, Amir Sheikh Hamad bin Khalifa Al Thani | Foto: Reprodução

Desde os anos 1990, o país passa por um rápido processo de urbanização. É uma urbanização ocidentalizada, até as mesquitas são modernizadas. Para levantar essa paisagem de concreto e vidro em um local onde não existe água doce, é necessária muita mão de obra, e o Catar não tem essa população. Para o empreendimento funcionar, se estabeleceu a contratação desses trabalhadores em uma lógica de planejamento estratégico empresarial.

O Estado terceiriza esse processo de contratação para empresas que por sua vez terceirizam para captadores. Empregados são trazidos de países como Índia, Paquistão, Afeganistão, Sri Lanka e alguns países africanos. São pessoas consideradas temporárias, que pagam para as empresas seu translado para o Catar, a moradia e demais serviços que consomem. Assim, acabam se entrando em uma condição de escravidão por dívida.

Esse modelo de contrato é chamado de Kafala (que em árabe significa “sistema de patrocínio”). Nele, os trabalhadores têm seu visto e estatuto legal patrocinado pelas empresas e tornam-se dependentes delas. A dependência é tamanha que os funcionários vivem onde as empresas determinam e, caso queiram deixar o trabalho, precisam receber autorização da empresa, caso contrário perdem o status de trabalhador legalizado no país e podem ser punidos pela lei.

Na prática, a empresa tem controle sobre o corpo e a decisão do imigrante. Com a Copa do Mundo de Futebol de 2022, esse problema ficou muito evidente. Mais de 6,5 mil pessoas morreram na construção dos estádios por terem sido obrigadas a trabalhar em ambiente extremo, sob calor de 50 ºC. Jovens tiveram infarto, morreram por desidratação e exaustão. 

Além disso, o país tem uma estrutura organizacional que se parece com a de uma empresa, pois o comando é familiar. Há um parlamentarismo de fachada, mas decisões são tomadas seguindo um planejamento estratégico que foi evidenciado pela Copa de 2022. O projeto de diplomacia pública (o tipo de diplomacia que envolve a sociedade, praticada por atores não estatais) envolveu o esporte como uma tentativa de ampliar o soft power do país. 

Soft power é o ato de projetar influência geopolítica de um país sem usar armas ou coerção. Quando isso é feito por meio dos esportes, damos o nome de sportswashing. Isso não é novo, foi feito pela alemanha nazista em 1936 com as Olimpíadas de Berlim. Por que o Catar trouxe a copa? Foi uma decisão estratégica, como uma ferramenta de marketing cujo objetivo era comunicar ao mundo que o Qatar é um país que quer a paz, a saúde e a integração das nações. 

E a história dos operários mortos pegou mal, foi uma falha na estratégia, um ruído. Não perceberam que o Kafala pudesse ser explorado pela imprensa internacional. Tentaram corrigir com mudanças legislativas antes do evento, mas ainda assim o problema dos direitos humanos foi explorado pela imprensa internacional. 

Existem aí diversos objetivos: fortalecer o turismo, conquistar alianças para proteger o pequeno território sem grandes forças armadas contra inimigos externos, ganhar visibilidade para beneficiar os negócios. O Catar conta com um fundo soberano que atualmente tem 461 bilhões de dólares dedicado a investir em empresas mundo afora. 10% da Latam, por exemplo, é de propriedade do Catar.

A estratégia não é nova. Em 1994, a criação da Qatar Airways já fazia parte desse plano estratégico. A empresa é pouco convencional, no sentido de que seu principal objetivo sempre foi colocar o pequeno país no mapa. Com investimento do Estado vindo de recursos da indústria petroquímica, a Qatar Airways transformou o país em um hub, ligando o mundo inteiro, tornando-o conhecido. 

Com aeronaves modernas, a frota da Qatar Airways tem média de idade de 5 anos. Ela não compete com as grandes empresas de aviação, como American Airlines, Delta, Lufthansa. A ideia é ter uma operação menor, mas de excelência. É uma empresa campeã com visibilidade, que desde o começo de suas atividades em 1995, frequentemente é citada por publicações especializadas como a melhor companhia aérea do mundo. Hoje, o comentário em revistas especializadas foi substituído pelo marketing feito pelas próprias pessoas, mas continua eficiente no sentido de promover o país como destino conhecido. 

A Al Jazeera Media Network é uma organização global de notícias que também entra como parte dessa estratégia de comunicação. A estrutura é bastante sofisticada; contando com mais de 80 redações em todo o mundo, diversos canais e veículos e oferecendo a mais ampla cobertura midiática do mundo árabe – segundo eles próprios, com liberdade de criticar o próprio governo. 

A Copa do Mundo de Futebol no Brasil, em 2014, e as Olimpíadas do Rio de Janeiro em 2016 foram usadas estrategicamente?

Não. Jogamos fora a oportunidade. O Brasil não utilizou os dois principais eventos esportivos no mundo como instrumento para vender o Brasil. Não montamos um planejamento estratégico para vender nos dois eventos as nossas praias maravilhosas, biomas exuberantes, recursos naturais, e todos os outros ativos que poderiam beneficiar o país. 

Poderíamos ter atraído o mundo com turismo ou fortalecido nossa indústria cultural, mas os eventos aconteceram improvisadamente. Construímos 12 estádios que ficaram largados e algumas das obras nunca foram concluídas. Vendemos o Brasil como um péssimo produto, não nos preparamos para a imagem negativa das nossas contradições. 

” instrumentalizou o maior evento esportivo do mundo para marketing”, diz Ycarim Melgaço | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

O Catar é completamente diferente. Há a questão da Kafala; as empresas são todas ligadas ao Emir; então existem problemas. Mas a questão é que o planejamento estratégico deles propõe uma série de medidas que instrumentalizou o maior evento esportivo do mundo para marketing. 

Um estudo de caso interessante é o das Olimpíadas de Barcelona em 1992. Barcelona era uma cidade decadente, em processo de desindustrialização, que escolheu investir no turismo. Anos antes do evento, investiu em museus – o maior acervo espanhol das obras de Picasso está em Barcelona, apesar de o pintor ser de Málaga, e não catalão. Valorizaram a arquitetura de Antoni Gaudí, criaram locais de visitação, montaram um roteiro turístico. O marketing para vender esse projeto foram as olimpíadas de 92. É isso que o Qatar faz agora e que o Brasil poderia ter feito.