Médico não recomenda prática do crossfit nem para atletas bem condicionados
25 março 2016 às 17h59
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A despeito de polêmica, muitas academias minimizam estudos que criticam a atividade
Yago Sales
Os argumentos de quem pratica esporte são inumeráveis. Recorrente, a boa saúde é um dos motivos que mais se ouvem entre os que defendem práticas de alto rendimento — modalidades que exigem superação pelo praticante. Normalmente, esportes com essa alta dose de esforço são desgastantes ao extremo, porque os treinos são longos. A condição física do adepto é fundamental. O crossfit é um exemplo dessas modalidades que se tornaram famosas e leva milhares de pessoas às academias em busca de corpos cheios de músculos e bem delineados, próximos da perfeição. O cuidado, porém, é negligenciado em tempos de moda. Reinam mais as promessas insensatas de resultados rápidos dos estabelecimentos que mais visam o lucro do que a boa saúde dos clientes.
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A alta chance de os praticantes sedentários e novatos convertidos ao esporte se lesionarem é muito pouco discutida. E as lesões estão atreladas, logicamente, à frustração.
Não se engane. Mesmo sob a promessa de que o crossfit é a continuidade da vida, com movimentos iguais aos do dia a dia, como correr, subir a escada, deitar e pular, os riscos são grandes. Especialistas entrevistados pelo Jornal Opção alertam para estudos que criticam com veemência alguns exercícios danosos ao corpo humano. Até morte pelo esporte o Brasil registrou neste ano.
O médico
Gerente de médico de reabilitação do Centro de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo (Crer), o fisiatra Maurício Rassi, não esconde sua posição contrária à prática do crossfit: “A minha família, o meu ciclo de amigos e pacientes não têm minha autorização para este tipo de atividade.” Ele tem motivo para radicalizar. Vem acompanhando pacientes com fraturas graves, algumas das quais irreversíveis. Isso o fez observar: o dano é muito maior do que os benefícios oferecidos pela modalidade de treinamento. Ele revela que o desgaste traz sequelas às juntas e às articulações, o que impossibilita ao corpo humano a mobilidade adequada e pode deixar o paciente preso ao tratamento fisioterapêutico.
A opinião do médico veio contra a onda de propaganda disseminada em páginas da internet que não dão nem sinal de perigo aos praticantes do crossfit, que tem inspiração em treinamentos das Forças Armadas. “Esses exercícios não são para pessoas comuns. Preciso colocar isso na cabeça dessa gente toda”.
Para ele, os exercícios são “sobre-humanos” e provocam danos às articulações, deixando heranças de dores constantes. “Os exercícios não são para pessoas comuns. Quem os pratica vive para isso, se dedica integralmente e tem histórico de treinamento”, destaca Rassi. Para ele, a modalidade não deve ser instigada a pessoas despreparadas fisicamente, pois pode ocasionar várias lesões. Ele observa que a coluna lombar, não tanto a cervical, tem sido muito lesionada devido aos esforços excessivos.
Ele relembra que o levantamento de pneus de caminhão e blocos de cimento com frequência demanda muito preparo físico. Por mais que os alunos defendam os professores, o médico alerta: “Por mais preparado que o professor seja, o corpo será afetado. Se não lesionou ainda, vai ocorrer”.
O médico alerta que as lesões dão dores nas articulações e podem romper com um músculo. “O crossfit pode dar artrose no quadril, porque se faz um esforço muito excessivo e o corpo não está preparado. Os esforços repetitivos, com cargas acentuadas lesionam. No correr dos anos, vamos ver que o crossfit faz mais mal do que bem”.
Postura
Para entender melhor as lesões, a reportagem procurou a fisioterapeuta Bruna Castro. Depois de trabalhar oito meses em uma academia e ver alunos se lesionando por causa de exercícios que sobrecarregam e colocam o corpo em posições inadequadas, ela entendeu que as lesões são causadas pela sobrecarga, principalmente por causa de levantamento de peso. Para Bruna, esses exercícios podem afetar ombros, joelhos, coluna e outras articulações.
“Para mim, a postura incorreta desgasta as musculaturas e os ossos.” Ela relata que, quando trabalhou em academia, discutia com treinadores porque eles partem da máxima de que o que vale é realizar o desejo dos clientes de emagrecer e ganhar massa muscular. Muitos dos alunos entram nas academias acreditando que isso pode ocorrer em um mês, pois alguns educadores físicos prometem isso e exigem do corpo do aluno para cumprir as metas.
De fato, os exercícios do crossfit são conhecidos por realmente dar um resultado muito rápido. Bruna, porém, diz que “no futuro o esportista sofrerá lesões por excesso de carga na musculatura, tendão, desgaste articular e pode até romper um ligamento.”
A fisioterapeuta destaca que conhece pessoas que iniciaram o crossfit e não continuaram os exercícios por conta das dores musculares. “E isto futuramente pode causar hérnia de disco, tendinite e bursite. Todas essas patologias são inflamações”, alerta.
Academias não exigem exames
Ela quase não aguentava de tantas dores. Naquela noite, chegou para o treino às 20 horas. Depois de ser convencida por vários amigos de que o crossfit oferece resultados rápidos, com um treinamento sem monotonia e feito em grupo, tentou se matricular em três academias. Ela sabia que os exercícios foram criados para o treinamento militar. Queria mesmo era fortalecer a musculatura, criar resistência e superar os limites físicos para alcançar o corpo bem desenhado.
Como fazia há alguns meses, a estudante Mariana de Castro Pires, 22 anos, cumpria todas as instruções de manuais de treinamento. Seguia-os à risca. Na noite em que decidiu nunca mais praticar o crossfit, estava determinada a lutar contra as limitações, romper com dificuldades. Um estímulo brotava dentro dela e, naqueles 60 minutos — o tempo diário para a prática —, ela fez agachamento, correu e realizou remadas.
No decorrer do treinamento, sentia fortes dores no joelho, mas resistiu ao treino até o fim. Ela sabia que as dores são comuns à pressão de um esporte de alto rendimento. Dois fatores determinantes devem ficar claros a quem quer se dedicar à modalidade: o primeiro é ter disciplina e o segundo é estar ciente das grandes dificuldades que devem ser superadas.
Depois do treino, Mariana chegou ao apartamento em que mora com muita dor; desta vez, pelo corpo inteiro e que a impediam até de sentar. As dores estão indissociáveis aos exercícios de crossfit. Se não doer, é porque o corpo não está ganhando resistência. E essa resistência é adquirida a partir do momento em que o aluno opta por viver obstinado, sempre em busca de romper as barreiras dolorosas e alimentar o ego ao se sentir imbatível, quando os exercícios se tornam quase indolores.
Desde que procurou pelo primeiro grupo para o treino, no Setor Universitário, Mariana percebeu algo errado: eles davam início aos treinos sem solicitar qualquer tipo de exame médico. Profissionais de Educação Física, médicos e praticantes da modalidade são unânimes quanto à necessidade de acompanhamento de um cardiologista, por exemplo.
Mariana fez três vezes, em escolas diferentes de Goiânia, o treino de crossfit — nenhuma delas sequer perguntou se teria passado por exames médicos. Paira a pergunta: onde estão os responsáveis por essas academias que, não apenas no caso de Mariana, liberam a prática do crossfit com facilidade sem passar por procedimentos médicos?
As academias fazem propaganda — quase uma imposição social — de bom acompanhamento, mas em duas das três academias pelas quais passou, Mariana teve de fazer os exercícios sem auxílio de treinador, pelo menos inicialmente. Não ter um acompanhamento efetivo é uma reclamação comum entre praticantes entrevistados pelo Jornal Opção. Eles são incentivados ao autodesafio. Numa autoreclusão para conhecer as limitações de si mesmo, para autosuperação. E isso implica em extrapolar todos os limites, desagradando especialistas que enxergam nessa obsessão um iminente risco para a saúde física. A estudante justifica o interesse pelo crossfit, devido a pessoas próximas que tiveram resultados rápidos. Mariana ia alcançando os resultados, mas o joelho machucado foi o ultimato para que ela desistisse de um esporte que, segundo ela, vicia e passa a fazer parte da vida de seus adeptos.
Grávida tem permissão de médico para continuar na atividade física
Os enjoos são os primeiros indícios de gravidez em mais um dia de treinamento na vida da personal trainer Luciana Rodrigues de Oliveira, de 32 anos. Ela já tinha ouvido falar que mesmo na gestação poderia dar continuidade aos exercícios de crossfit. O alívio, contudo, só veio quando foi liberada pelo médico obstetra. Mas o tamanho da barriga mudou as rotinas dos treinos a partir do quinto mês. Ela justifica o fato de continuar praticando o esporte por conta da rotina de treino que, segundo ela, reduz os efeitos no corpo decorrentes da gravidez, dando-lhe mais energia e uma melhor noite de sono.
Luciana diminuiu a carga dos pesos que utiliza, mas, mesmo assim, o treino continua exigindo força para, em uma hora diária, superar seus limites físicos. O obstetra de Luciana, no entanto, não quis comentar a decisão de permitir a paciente a seguir nos exercícios.
A reportagem acompanhou um treino de Luciana. Ao lado de uma turma de pelo menos 20 alunos, três professores acompanham exercícios em equipamentos com proteção. Ela pratica crossfit às 7 horas da manhã.
Também praticante do crossfit, a médica oftalmologista Raquel Costa Coelho, 45 anos, atesta a importância da prática e critica os profissionais que são contrários ao esporte. “É um número pequeno de médicos. Eles não conhecem o crossfit e emitem opiniões sem embasamento”, diz. Para ela, que há cinco anos pratica a modalidade, existem muitos praticantes que se confundem com esportistas profissionais. “Aí é que ‘mora’ o segredo”. O profissional, ao qual se dá o nome de atleta preparado, tem de ter uma dedicação integral aos treinos, com alimentação adequada, sem fumar, sem bebida alcoólica e uma rotina na fisioterapia.
Lesões
O crescente número de praticantes do crossfit lesionados chama a atenção de especialistas. O Jornal Opção buscou pesquisas relacionadas ao tema, mas não encontrou na literatura científica muita coisa senão um estudo em inglês, intitulado “The nature and prevalence of injury during Crossfit training” (“A predominância e os tipos de lesões durante treinos de crossfit”), publicado em 2013 no “Journal of Strength and Conditioning Research Publish Ahead of Print”. Segundo o estudo, lesões no ombro e coluna são as mais comuns entre os pacientes.
O ortopedista Murilo Tavares Daher, chefe do Grupo de Coluna do Crer, reitera a importância de os exercícios serem feitos apenas depois de o aluno passar por especialistas. “Aconselho o paciente a começar devagar, no seu limite, sem querer acompanhar a turma que está sob constante expectativa de superação”, alerta.
Os exercícios pautados em altíssima intensidade, e em curto período de tempo, tem a vantagem de proporcionar boa queima calórica. Mas eles oferecem riscos para a saúde, como lesões musculares e, até mesmo, problemas cardíacos em pessoas predispostas.
Depois de demonstrar exercícios à lente do fotógrafo do Jornal Opção, o estudante de Educação Física Gleydson Rodrigues, de 29 anos, não escondia a fadiga.
A prática, diz ele, exige força, velocidade, coordenação, equilíbrio e resistência muscular. “A adrenalina é tudo para mim. Supero a mim usando o meu próprio corpo. É um autodesafio a cada treino.”
Morte
A morte de Roberval Ferreira Ferreira, 35 anos, em Águas Claras, Brasília, no final de fevereiro, é um desses exemplos que alertam para a conscientização. Ele morreu depois de uma parada cardíaca na academia do Park Way, após exercícios de crossfit. Um vídeo de 5 segundos que circula na internet mostra a tentativa frustrada dos paramédicos de reanimar o coração de Roberval no local em que treinava.
O cardiologista do Instituto de Neurologia de Goiânia, Alberto de Almeida Las Casas Júnior, explica que os exercícios são pesados para iniciantes e devem exigir acompanhamento médico. Para ele, quem quer dedicar-se à prática do esporte, deve se consultar com um cardiologista. “No consultório, se faz uma avaliação cardiológica, mas um dos procedimentos mais importantes é o eletrocardiograma [aquele exame que demonstra um gráfico registrando ocilações elétricas da atividade do músculo cardíaco] onde pode ser diagnosticada predisposição a arritmias cardíacas quando os impulsos elétricos do coração não funcionam corretamente.” Essas arritmias podem ser percebidas quando há palpitação — quando o coração tem batimentos rápidos — e dores no peito, desmaios e tonturas.
O cardiologista já atendeu esportistas vítimas de Acidente Vascular Cerebral (AVC). “Muitos dos casos que nos chegam são de pacientes que estavam de cabeça para baixo e isto pode causar dissecção da artéria carótida.” Ele explica que essa dissecção é uma das causas frequentes de Acidente Vascular Cerebral Isquêmico (AVCi), em pacientes jovens, por volta dos 30 anos.
O AVC é um sangramento relacionado ao aumento excessivo da pressão arterial devido ao esforço físico feito pelo crossfit. A pressão arterial fica alta e ocorre uma ruptura da parede da artéria e leva o AVC.
Fiscalização
O chefe da Advocacia setorial do Conselho Regional de Educação Física de Goiás e de Tocantins da 14ª Região (CREF 14/GO-TO), Samuel Lemos, diz que a melhor maneira de evitar treinar em academias despreparadas é procurar o responsável técnico registrado no CREF. Conhecer a estrutura física é importante, inclusive procurar permissões do Corpo de Bombeiros e da prefeitura – que é a soma de vários alvarás, dentre eles o alvará da Vigilância sanitária.
Em Goiás, segundo o CREF/GO-TO, são pelo menos 1.740 academias regulamentadas, mas nem todas são liberadas para oferecer a modalidade crossfit. Com a ascensão da modalidade, e a enorme procura, as denúncias de irregularidades aumentaram quando academias não autorizadas surgiram para oferecer os treinos de maneira despreparadas. Os estabelecimentos são notificados muitas vezes por não oferecerem condições de acompanhamentos adequados. “O profissional de Educação Física é de saúde então precisa respeitar os requisitos, ter alvará de funcionamento.”
Não é o caso de abandonar os exercícios, mas o bom senso evita contratempos. A premissa de que os exercícios físicos fazem bem para a saúde é válida. Mas buscar um corpo perfeito de maneira irresponsável, em exercícios sobre-humanos e sem um acompanhamento adequado, em desrespeito à saúde, não pode ser a prioridade. Afinal, se exercitar com cuidado pode evitar lesões e mortes.
Esta reportagem foi atualizada às 11:10, do dia 31 de março de 2016.