Especialistas alertam para descontrole no preço da energia como aconteceu com gasolina
04 setembro 2022 às 00h00
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Privatização da Eletrobras veio atrelada a Preço de Paridade Internacional e a termelétricas poluentes – setor produtivo prevê aumento de preços
A privatização da Eletrobras, aprovada pelo Senado em 13 de julho, tem sido alvo de críticas de pesquisadores, associações de indústrias e de trabalhadores da própria empresa de geração e distribuição de eletricidade. As razões para a desaprovação são várias, desde a forma apressada como a desestatização tramitou no congresso até a participação de acionistas beneficiados no processo.
A Eletrobras é responsável por 28% da capacidade de geração de energia elétrica do país. Do total de usinas, 94% da capacidade de geração é proveniente de fontes renováveis. A empresa detém 40,2% das linhas de transmissão de todo o país, somando 74 mil km de rede. Ela controla metade da capacidade de armazenamento dos reservatórios nacionais.
dados do Ministério de Minas e Energia
Denis Castilho é doutor em Geografia, professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisador no tema da modernização, redes técnicas e produção do território. O cientista acompanha de perto a privatização da Eletrobras desde 2017, quando a primeira Medida Provisória sobre o tema tramitou. Ainda em setembro, Denis Castilho publicará artigo sobre todo o processo com informações cedidas de antemão ao Jornal Opção.
Tramitação atabalhoada
A lei da privatização da Eletrobras, aprovada no Senado por 42 votos favoráveis a 37 contrários, nasceu como Medida Provisória (MP) em fevereiro de 2021. Denis Castilho afirma que este fato já indica um início desajeitado, pois a MP é um instrumento com força de lei que pode ser adotado pelo presidente da República em caso de relevância e urgência, segundo o art. 62 da Constituição. “O setor mais estratégico do país não deve ser tratado de forma provisória e emergencial, sem audiências públicas, sem a consulta de especialistas do setor, de sindicatos ou da sociedade.”
Conflitos marcaram a apreciação da proposta pelo Tribunal de Contas da União (TCU). Em dezembro de 2021, o ministro Aroldo Cedraz retirou a votação de pauta ao receber documentos de procuradores que apontavam a subavaliação da empresa. Em fevereiro de 2022, o ministro Vital do Rêgo confirmou ao jornal Folha de S.Paulo que o patrimônio, avaliado em R$ 67 bilhões, valia pelo menos R$ 130,4 bilhões segundo análise do órgão; ou até R$ 181 bilhões, conforme cálculo do Ministério de Minas e Energia. Associação de Empregados da Eletrobras (Aeel) e Associação dos Engenheiros e Técnicos do Sistema Eletrobras (Aesel) falam em ativos que somam quase R$ 400 bilhões.
Por fim, a empresa foi vendida por R$ 96,6 bilhões, dos quais se espera que a União receba R$ 25,3 bilhões ao fim do processo pela renovação dos contratos de 22 usinas hidrelétricas. Em entrevista ao Estadão/Broadcast, o ministro Vital do Rêgo afirmou que o TCU foi fortemente pressionado para acelerar a análise da operação. “É minha obrigação não deixar que o patrimônio público seja liquidado. Estão fazendo liquidação”, criticou o ministro ao Estadão/Broadcast em abril de 2022.
A subavaliação da empresa não é o principal alvo das críticas no texto da lei. O ponto principal de conflitos diz respeito à descotização. A Eletrobras possuía 22 grandes hidrelétricas, que foram construídas com recursos das 75 milhões de unidades consumidoras – residências e indústrias usam os serviços da empresa. Para compensar os contribuintes, um contrato de cotas previa a amortização da tarifa de energia elétrica para os consumidores até 2042. Até essa data, cada megawatt/hora (MWh) seria vendido aos consumidores por R$ 65. Com a quebra desse contrato, o preço de mercado será praticado: de R$ 300 a R$ 350 MWh.
Segundo Denis Castilho, este movimento aumentará a liquidez da empresa, que teve lucro de R$ 5,7 bilhões apenas no ano de 2021. Com a expectativa de aumento, a companhia entrou para o ranking das dez que têm ações mais valiosas da bolsa brasileira. De início, operação movimentou R$ 36,7 bilhões, vendendo 802 milhões de ações a R$ 42 cada.
A quebra do contrato de amortização veio na forma de um “jabuti” no texto da lei de privatização da Eletrobrás – uma proposta legislativa sem relação com o texto original. Outro jabuti inserido no texto da lei diz respeito à obrigação da contratação de 8GW de energia proveniente de termelétricas movidas a gás em estados do Nordeste, Norte, Sudeste e Centro-Oeste.
“Na maioria dessas regiões, não há gasodutos”, diz Denis Castilho. “Essa infraestrutura será custeada pela população, e não pelos acionistas. Isso trará custo extra de R$ 56 bilhões. Somando impostos e benefícios setoriais, o grupo de entidades empresariais União pela Energia calcula que o impacto poderá ser de R$ 84 bilhões, os quais serão repassados em forma de tarifas.”
Causas
A aprovação da descotização e obrigatoriedade da contratação de termelétricas – cláusulas dispensáveis ao tema da privatização – ocorreram por pressão dos acionistas minoritários da Eletrobras, afirma Denis Castilho. A empresa era majoritariamente controlada pelo Estado, mas tinha como sócios minoritários a 3G Capital; o Fundo de Investimentos e Ações Dinâmica Energia, de José João Abdalla Filho, dono do Banco Clássico; Lírio Parisotto, da Geração Futuro; e outros.
“Os sócios detinham participação suficiente para compor o conselho e apontar presidentes da empresa”, diz Denis Castilho. “Alguns deles articularam a privatização e estruturaram a venda da empresa via BNDES, como Wilson Ferreira Júnior, que comandou a Eletrobras de 2016 a 2021 e tomará posse novamente em 20 de setembro de 2022.”
Segundo Denis Castilho, outros atores que pressionaram Executivo e Legislativo pela aprovação do processo foram empresários que já atuam com termelétricas no Brasil. O país tem poucas termelétricas movidas a gás natural e quase nenhuma infraestrutura em gasodutos, mas possui muitas termelétricas movidas a diesel, que são acionadas durante o período de seca para poupar as hidrelétricas. “Grupos que detêm as termelétricas aproveitaram o momento para obrigar a contratar de seus serviços durante todo o ano”, diz o pesquisador.
Consequências
Denis Castilho prevê: “A princípio, deve haver um otimismo. Jornais irão mencionar a valorização da empresa como evidência do sucesso. Mas são os consumidores que estão dando esse lucro; não só o pequeno cliente, mas principalmente as indústrias e empresas. Em três a cinco anos, veremos o mesmo que aconteceu com a gasolina quando passou a ser negociada em paridade com preços internacionais (PPI) – a precificação se tornará incontrolável. Logo, veremos empresas tendo dificuldades para pagar a conta de energia e perda de competitividade no cenário internacional.”
A Associação de Grandes Consumidores Industriais e de Consumidores Livres (Abrace) prevê um custo aos consumidores que pode chegar a R$ 20 bilhões por ano, com aumentos na conta de energia que alcançam até 20% para o setor produtivo. Com o aumento do insumo energético – presente em todas as cadeias produtivas – o país pode ver também aumento da inflação, com aumento do preço da cesta básica ao dos serviços.
“É claro que a Eletrobras fica mais atraente com a descotização de suas usinas”, disse Carlos Cavalcanti, diretor-titular do Departamento de Infraestrutura (Deinfra) da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) no dia 16 de junho. “Mas, se descotizar as usinas da Eletrobras, as outras empresas do setor irão reivindicar o princípio da isonomia imediatamente para a venda de energia a preços mais elevados”.
Segundo o executivo, a expectativa era ganhar R$ 1,2 trilhão em 30 anos com as usinas, que é o prazo de concessão do setor, mas a descotização tira R$ 1,1 trilhão dos consumidores, segundo estudos da Fiesp. “Ou seja, a sociedade estaria pagando não mais ao governo, mas às empresas do setor elétrico”, disse Cavalcanti.
Na contramão do mundo
Além do problema da precificação, o cientista lembra que a lei coloca o país em descompasso com a transição energética mundial para energias limpas e renováveis. Ao aumentar a dependência do Brasil nos combustíveis fósseis das termelétricas, movidas a uma infraestrutura que o país ainda não possui, a lei desvirtua o potencial do território para a energia solar, por exemplo.
Há ainda a redução no papel do estado em propor políticas setoriais, segundo Denis Castilho. “Mais da metade dos reservatórios de água do país eram controlados pela Eletrobras”, diz o pesquisador. “Além da geração de energia, o represamento desses reservatórios também é usado para irrigação, produção de alimentos e abastecimento humano. Com a privatização, veremos conflitos pela gestão da água. A empresa compra reservatórios que têm função pública com interesse privado – como o país vai arbitrar esse dilema?”