No dia 14 de outubro, o Conselho Federal de Medicina (CFM), publicou no Diário Oficial da União uma norma que regulamenta o uso de medicamentos à base do canabidiol, um derivado da Cannabis, planta da maconha. Segundo a regra, a Cannabis medicinal pode ser prescrita apenas no tratamento de epilepsia refratária em crianças e adolescentes com síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut ou complexo de esclerose tuberosa. Na prática, a resolução excluiu a grande maioria dos casos e grupos de pessoas em que os medicamentos eram utilizados.

A reação da sociedade foi de indignação, pois no restante do mundo o uso medicinal da Cannabis está crescendo – 50 países já permitem algum tipo de uso medicinal da maconha e nos Estados Unidos a cannabis já está na farmácia em 33 estados com previsão de liberação em todo o país até 2024. Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), 100 mil brasileiros dependem desses medicamentos diariamente para aliviar o sofrimento causado por condições como epilepsia, esclerose múltipla, artrite, distúrbios psiquiátricos e dores crônicas.

Por isso, o Ministério Público Federal (MPF) instaurou procedimento preparatório, nesta segunda-feira, 17, para apurar a legalidade de uma resolução do CFM. De acordo com o procurador da República Ailton Benedito de Souza, responsável pelo procedimento, a investigação vai apurar se há compatibilidade entre a resolução do CFM com o direito social à saúde, nos termos da Constituição Federal.

Como primeiras providências, o MPF requisitou à Anvisa, que em 2019 autorizou a fabricação e a importação de produtos com Cannabis para fins medicinais, documentos que mostrem as evidências científicas que sustentam as atuais autorizações para uso medicinal da Cannabis no Brasil. O procurador da República também requisitou ao CFM documentos que demonstrem as evidências científicas que sustentam a nova resolução da entidade. 

A norma também trouxe temor à própria classe médica, já que médicos podem ser perseguidos pelos conselhos regionais caso receitem os remédios para os casos não previstos pelo CFM. Por isso, Ailton Benedito também requisitou ao Ministério da Saúde informações sobre as repercussões administrativas, financeiras e técnicas no Sistema Único de Saúde (SUS) das resoluções da Anvisa e do CFM. O prazo para as respostas é de 15 dias.

Devido a repercussão negativa, o CFM abriu consulta pública à população sobre o assunto. Esta etapa ocorrerá de 24 de outubro a 23 de dezembro. Na nota em que anuncia a consulta pública, a entidade médica reafirmou e defendeu o conteúdo da resolução, destacando que foram avaliados quase 6 mil artigos científicos publicados em “importantes periódicos nacionais e internacionais”, além do recebimento de contribuições de médicos e instituições durante consulta pública anterior, ocorrida no mês de julho. 

“As conclusões apontam para evidências ainda frágeis sobre a segurança e a eficácia do canabidiol para o tratamento da maioria das doenças, sendo que há trabalhos científicos com resultados positivos confirmados apenas para os casos de crises epiléticas relacionadas às Síndromes de Dravet, Doose e Lennox-Gastaut”, argumenta o CFM. “Diante desse quadro, o plenário do CFM considera prudente aguardar o avanço de estudos em andamento, cujos resultados vão ampliar – ou não – a percepção de eficácia e segurança do canabidiol, evitando expor a população a situações de risco”, acrescenta.

Opinião dos especialistas

Kathleen Fornari é especialista em Cannabis medicinal, CEO e cofundadora da Anna Medicina Endocannabinoide. Segundo Fornari: “De acordo com dados da Associação Brasileira das Indústrias de Cannabis (Abicann), já existem mais de 35 mil evidências relacionando a cannabis medicinal à saúde. Baseados em estudos animadores, milhares de médicos brasileiros, das mais variadas especialidades, passaram a prescrever produtos à base de cannabis. De acordo com o texto da norma restritiva do CFM, fica proibida a utilização de canabidiol (CBD) para terapia de qualquer outra patologia, algumas delas com estudos avançados em várias partes do mundo, como transtorno do espectro autista, Alzheimer e Parkinson.”

Fornari lembra ainda que existem efeitos positivos de muitas das 500 moléculas atribuídas à planta da maconha, e que não apenas o canabidiol (CBD) possui propriedades medicinais. “O CFM destaca a proibição da prescrição de cannabis in natura para uso medicinal, bem como quaisquer outros derivados que não o canabidiol. É importante ressaltar, evitando a onda de preconceito e fake News, que a quantidade de tetrahidrocanabinol (THC) existente nos produtos importados com extração full spectrum, aprovados pela Anvisa, não produz os efeitos típicos da maconha, mas sim tem o objetivo de tratar ou amenizar sintomas diversos, como espasmos, tremores, convulsões e enjoos.”

“Sendo assim, a resolução nº 2.324 do CFM é um retrocesso à medicina brasileira e à ciência mundial. O Brasil, mais uma vez, deixa de lado uma tendência global que tem ajudado milhões de pessoas ao redor do planeta e opta por impedir intervenções médicas com base científica em pacientes que fazem tratamento com este fitofármaco, condenando-os a uma rotina estressante e precária. 

Norma parece mais medida ideológica do que pensada em benefício dos pacientes, diz Kathleen Fornari | Foto: Divulgação

“Frente às decisões recentes durante a pandemia, como a liberação da prescrição de cloroquina e ivermectina a ser administrada a critério médico — remédios que comprovadamente não auxiliam no tratamento da Covid-19, essa resolução do CFM, que praticamente criminaliza a cannabis medicinal no Brasil, mais parece uma medida ideológica de ‘caça às bruxas’ do que algo pensado em benefício dos pacientes e da população.

“Hoje, para reverter esse quadro e fazer com que a cannabis medicinal seja respeitada no país, precisamos de uma mobilização nacional pró-saúde, com foco principal na aprovação de leis que estimulem estudos relacionados a sua funcionalidade e, principalmente, que beneficiem a produção de fármacos nacionais, diminuindo preços e tornando a cannabis medicinal mais acessível para a população. Chega de retrocesso!”

Direito médico

Thayan Fernando Ferreira afirma que norma é inconstitucional | Foto: Divulgação

Thayan Fernando Ferreira, advogado especialista em direito público e direito médico e afirma: “Penso que o impacto desta norma para as decisões médicas fere a constituição porque ela desautoriza o médico a optar pela melhor escolha para o paciente. Um médico tem autonomia para selecionar qual o melhor tratamento para seu paciente e tem a liberdade de exercício da profissão. Isso é inconstitucional, todos têm direito ao exercício livre e autônomo da sua profissão. Diante da Constituição, acredito que uma determinação como essa não pode misturar conceitos criminalísticos a questões de saúde.” 

“As vezes percebo que a pauta do canabidiol esbarra na segurança pública, muito por conta do uso ilegal da Cannabis. Mas as autoridades precisam perceber que uma questão não tem relação com a outra. Se esse insumo é capaz de melhorar a qualidade de vida das pessoas, precisamos aproveitá-lo, respeitando sua deliberação adequada. É inadmissível um médico ser punido por conta de uma prescrição correta. Impedí-lo de fazer seu diagnóstico e a melhor proposta de tratamento é como se vetasse um juiz de poder aplicar a lei, ou ao professor de ensinar a ler e escrever. Medidas como essa são um atraso para a medicina.”