A travessia de Fernando Henrique Cardoso
16 abril 2014 às 16h03
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Escrito em parceria com o jornalista americano Brian Winter, o livro de memórias “O Improvável Presidente do Brasil” narra a vida e o legado de um dos personagens mais importantes da história do Brasil republicano, o presidente Fernando Henrique Cardoso
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Um intelectual e seu séquito de economistas brilhantes varavam madrugadas e madrugadas em busca de um objetivo: tornar o complexo simples de ser entendido pela população brasileira. Para isso, era fundamental o mais absoluto sigilo. Se uma informação vazasse para a imprensa, tudo iria por água abaixo. O destino de um país estava em jogo.
Para enfrentar as madrugadas era fundamental não se deixar derrotar por algo que sinalizasse cansaço a todo o ser humano: o sono. “Quilos de café foram consumidos […] passávamos incontáveis dias consultando manuais de economia, rabiscando equações em quadros-negros e discutindo até tarde da noite”, afirma, em seus escritos, o líder desse notável grupo de economistas. À medida que a complexidade de ideias se materializava, aumentava a preocupação com o entendimento do público, que necessitava ser convencido.
O sucesso da empreitada dependia de que milhões e milhões de brasileiros acreditassem que o que estava em gestação daria certo. “Sou o infeliz que terá de vender esse plano na televisão, de modo que, se não entender o que estão dizendo, decididamente é porque há algo errado”, enfatizava mais uma vez o líder daquele grupo.
Deu certo. A batalha do entendimento foi assimilada pela população. E o líder daquele grupo… Bem, a partir daquele momento, foi possível ele pensar em ser aquilo que de fato se tornou: Presidente da República. O episódio que relato se refere aos bastidores em torno da concepção do Plano Real, plano esse que tornou viável a candidatura de um intelectual ao cargo mais ambicionado da República: Fernando Henrique Cardoso.
O notável escritor mineiro João Guimarães Rosa ensina, em sua obra maior “Grande Sertão: Veredas”, que o que importa na vida não é o começo nem o fim, mas a travessia que se faz entre esses dois limites.
É para contar sua travessia da infância aos dias de hoje que Fernando Henrique Cardoso, em parceria com o jornalista Brian Winter, escreveu o livro “O Improvável Presidente do Brasil”. O livro já circula há algum tempo no mercado dos Estados Unidos e encontra-se agora disponível em português para o mercado brasileiro. Os escritos de FHC deixam bem claros os objetivos aos quais pretende atingir: “É a história da minha vida, da minha família e do meu país — tudo interligado, pelo acaso ou o destino, das maneiras mais pessoais e inesperadas”.
“O Improvável Presidente do Brasil” percorre praticamente toda a vida do intelectual-presidente: a infância vivida no Rio de Janeiro, os primeiros anos em São Paulo, que o levaram a se sentir mais paulista do que carioca, a formação como professor e pesquisador de renome, os anos de exílio e o retorno ao Brasil.
Creio não ser necessário apresentar uma figura tão pública. Discutamos, portanto, as várias fases que constituem o todo da vida do personagem da política brasileira que nos deixou como legado a estabilidade da economia. Falemos de sua travessia.
Laços de família e a formação do caráter
Fernando Henrique Cardoso veio a este mundo no Rio de Janeiro, no leito de uma família de classe média alta repleta de estrelas. Seu avô, tio-avô, pai e vários primos chegaram ao mais alto posto do exército brasileiro: o de general. “Eu nasci na casa de minha avó, em Botafogo, a 18 de junho de 1931”, diz o ex-presidente nos seus escritos recordando sua primeira infância.
Foram estreitos os laços de seus antecessores em terras goianas. Basta dizer que seu bisavô, o capitão que faleceu reconhecido como brigadeiro pelo Imperador Dom Pedro II, Felicíssimo do Espírito Santo Cardoso, foi presidente nomeado pelo Imperador por duas vezes da província de Goiás. Além disso, exerceu ele o mandato de deputado e senador pelas terras do Anhanguera.
Ao recordar, nos seus escritos, seus tempos de infância, o marido de dona Ruth evidencia a enorme influência paterna na formação da natureza conciliadora que o acompanhou no transcorrer de toda a sua travessia por esta vida.
Diz ele a respeito do pai: “Meu pai, o general Leônidas Cardoso, era um fantástico contador de histórias, espécie de homem ilustrado, bonitão e de ar afável que ocupava o centro das atenções em qualquer círculo. Refinado e de fala mansa, liberal e tolerante, ele era a antítese do estereótipo do soldado latino-americano embrutecido. Nunca usava o uniforme militar em casa, e não me estimulou a seguir carreira nas forças armadas. Pelo contrário, esperava que os filhos tivessem como ele uma grande curiosidade intelectual”.
Quanto à sua progenitora, Nayde Silva Cardoso, o ex-presidente se refere com igual carinho, embora seja essa referência menos eloquente do que as feitas em relação ao pai. “Mais perspicaz que meu pai [a mãe] no que dizia respeito à intenção dos outros, era perfeitamente apta a distinguir com precisão e rapidez, o bem do mal.”
A formação do intelectual
A carreira militar impõe constantes transferências pelo território nacional. Não foi diferente a vida de “caixeiro-viajante” do general Leônidas Cardoso, pai do futuro Presidente. A profissão o levava a perambular de um lado a outro do país.
Numa dessas andanças conheceu, em Manaus, a mãe de FHC e com ela se casou. Noutra dessas transferências ocorridas na carreira do general Leônidas, ele se mudou para aquela cidade na qual Fernando Henrique fincaria suas raízes, São Paulo: “Eu nunca antes tinha visto ruas sem pavimentação; no nosso bairro perdizes, muitas delas, eram de terra batida, ainda percorridas por cavalos e burros que puxavam as carroças”, descreve a respeito de seus primeiros contatos com a cidade.
Em São Paulo, FHC se casou com dona Ruth, casamento esse que gerou três filhos — duas mulheres e um homem. Casamento, filhos, a entrada na vida acadêmica e a militância política provocaram, na vida do futuro Presidente, uma metamorfose de identidade que ele mesmo fazia questão de enfatizar e propagar ser “mais paulista que carioca”.
Um fato curioso transcorrido na vida acadêmica do filho do general Leônidas se revelou na sua tentativa malsucedida de cursar direito na Universidade de São Paulo. FHC não passou no exame por não ter obtido média no exame de latim: “Embora tivesse média suficiente para entrar naquela escola”, enfatiza.
Talvez, a sociedade tenha perdido um advogado, entretanto ganhou, a mesma sociedade e a mesma Universidade de São Paulo, um sociólogo de primeira grandeza, reconhecido nacional e até internacionalmente. Os anos de Fernando Henrique na escola do Filosofia, Ciências Humanas e Letras da USP foram os de maior efervescência intelectual jamais vividos naquela instituição.
O filho do general Leônidas Cardoso teve a oportunidade de estudar com intelectuais franceses internacionalmente conhecidos, como é o caso do sociólogo Roger Bastide (especialista em questões raciais). Outro nome de envergadura da intelectualidade europeia que lecionou naquela instituição foi o célebre antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, este chegou a ser professor de Ruth Cardoso. Entretanto a mais decisiva influência intelectual na vida do intelectual-presidente foi, sem dúvida, a de um filho de humildes imigrantes portugueses que se tornou um dos maiores ícones da sociologia brasileira: Florestan Fernandez (à direita). “Florestan seria a maior influência do meu desenvolvimento intelectual”, admite o sociólogo.
Nos anos uspianos do professor e pesquisador, Fernando Henrique teve a oportunidade de ser o tradutor de uma legenda da esquerda mundial na ocasião que este e sua também famosa esposa visitaram o Brasil. Falo de Jean-Paul Sartre e da ícone da causa feminista Simone de Beauvoir. Seu relato: “Eu me ofereci. Durante duas horas, fiz o melhor que pude. Era muito intimidante. Eu tinha apenas 29 anos e, de repente, me via tentando falar em nome de uma lenda viva. Foi realmente um espetáculo: um filósofo ultraesquerdista mundialmente famoso e a mais conhecida feminista do planeta, Simone de Beauvoir, falando pela televisão, num país tropical ainda em grande parte analfabeto, com um jovem tradutor que tinha apenas uma certa ideia do que eles estavam dizendo”.
Outra atividade intelectual na qual se envolveu o intelectual-presidente foi nos famosos seminários implementados por um grupo de intelectuais da USP com objetivo de estudar a desafiadora obra do mais revolucionário crítico do capitalismo: Karl Marx. Quanto ao motivo de estudar a fundo o pensamento desse grande pensador, Fernando Henrique nos explicita: “Decidimos estudá-lo não só porque suas obras falavam dos problemas de transformação de uma sociedade injusta, mas também porque achávamos que sua visão tinha sido distorcida pelos comunistas, que exerciam certo monopólio sobre Marx, o que parecia errado”.
Quem conhece a obra acadêmica de Fernando Henrique Cardoso sabe que este enveredou suas pesquisas para o estudo de um assunto fundamental na identidade brasileira: a raça. Para isso, seu foco de pesquisa não foi o Nordeste, mas sim o Sul do país. “A colcha de retalhos racial do Sul do Brasil era muito mais complicada e fascinante do que esperávamos”, revela o autor do clássico “Capitalismo e Escravidão no Brasil Meridional”. E, assim, de prancheta e extensos questionários na mão, o então pesquisador se embrenhava, com o vigor da juventude, não só pelo Sul do país, como também nos subúrbios de São Paulo, e tinha o objetivo de entender a estrutura da sociedade brasileira. Mal sabia que o conhecimento da metodologia científica muito lhe seria útil, anos mais tarde, para comandar e entender complexos argumentos que davam sustentação teórica à maior obra de seus dois governos: o Plano Real. No comando de muita gente brilhante, tinha alguém que sabia conduzir seus liderados por caminhos até então muito incertos.
O “amargo caviar do exílio”
17 de abril de 1964. O Brasil vivenciava o fervor de um golpe de Estado que muitos insistem dizer que foi uma “Revolução”. Nesse ambiente de ebulição política, um intelectual parte apressadamente, sem a família, rumo ao exílio para um país que era, na época, de longe, o mais democrático da América Latina: o Chile.
O Chile seria a segunda nação da família Cardoso. Viveram lá cerca de quatro anos, numa época em que militavam na vida política e cultural daquele país andino figuras proeminentes na história no país e, de certa forma, em todo mundo.
Era o caso do poeta Pablo Neruda, Prêmio Nobel de Literatura, do presidente Salvador Allende e do economista brasileiro Celso Furtado. Viveu por lá, na mesma época, um dileto aluno de Fernando Henrique que se destacaria na política nacional: José Serra.
A todos eles FHC faz referências carinhosas em seus escritos. “Neruda era como um deus. Todo mundo nessas festas fazia tudo para homenageá-lo”, relata sobre o respeito que a sociedade chilena tinha pelo grande poeta. O presidente do Chile, Salvador Allende, é outra personalidade reverenciada nos escritos de Fernando Henrique. “Refinado, de fala mansa, gostava de conversar sobre poesia e literatura, mas só raramente sobre política.” Celso Furtado era o economista de “grande projeção” com quem FHC compartilhou um apartamento antes que dona Ruth e os filhos chegassem a Santiago. Também compunha esse grupo do aluguel o futuro ministro da cultura do governo FHC, Francisco Weffort. As primeiras lembranças do dileto aluno José Serra não são esquecidas pelo professor Fernando Henrique: “Sentado no fundo da sala de aula, com aqueles enormes olhos de gavião, bebendo cada palavra”.
Os anos vividos no país de Neruda possibilitaram ao sociólogo-presidente alçar voos intelectuais maiores do que aqueles que tinha até então alcançado. Foi, nessa época, que a curiosidade intelectual herdada do general Leônidas Cardoso possibilitou a FHC conjugar esforços com o sociólogo chileno Enzo Faletto (1935-2003) no sentido de escreverem juntos um livro que repercutiria nos meios intelectuais internacionais. Falo de “Desenvolvimento e Dependência da América Latina”.
Nestes escritos, os autores discutem as semelhanças entre os países latino-americanos nos primórdios de uma nova ordem que viria a surgir no mundo décadas mais tarde: a globalização. Nascia, assim, a Teoria da Dependência, teoria essa aceita por muitos, mas rejeitada por outras personalidades de considerável peso intelectual, como foi o caso do próprio diretor-geral da Comissão para o Desenvolvimento da América Latina (na qual FHC trabalhava), o respeitado economista argentino Rául Prebisch.
Polêmicas à parte, o fato é que esse livro abriu as portas para que o presidente-sociólogo, a convite do renomado sociólogo Alain Touraine, seguisse para uma nova etapa de seu exílio. Estava à espera de FHC a Universidade de Nanterre, na França; e ali pôde ele testemunhar um importante movimento: a “Revolução” de maio de 1968. Este movimento de massa, sob a liderança de um aluno de FHC em Nanterre, Daniel Cohn-Bendit, balançou a França do general Charles de Gaulle em busca da liberdade. “Nessa época, era proibido proibir; a pauta do momento era sexo, drogas e rock’n’roll”, aponta FHC. A revolta dos estudantes de Nanterre, embora não fosse uma luta sua, não deixava de entusiasmar o sociólogo que, de um ponto de observação privilegiado, observava um excepcional movimento de massas que acabaria se propagando pelo mundo afora. Após cinco anos no exílio. O mandato de prisão contra o sociólogo, que se tornaria presidente, fora revogado. Estava na hora de voltar para casa.
O professor e o político
Ao retornar ao Brasil, Fernando Henrique Cardoso se defrontou com um regime ainda fechado e com a repetição de um acontecimento que ele tinha testemunhado em Paris, agora, em terras brasileiras: a revolta dos alunos da USP contra os da Mackenzie. Elevavam mais ainda a temperatura política os assaltos a bancos provocados por guerrilheiros e algo que evidenciaria, nos anos de 1970, a face dura do regime: a morte, nas dependências do DOI-CODI, do jornalista Vladimir Herzog.
A volta à USP significaria, para Fernando Henrique, a aposentadoria imposta pelos militares. Com a precoce aposentadoria, não tardaria a aparecer, sob sua liderança, o jeitinho brasileiro para expressar ideias em tempos de muita turbulência. O famoso jeitinho brasileiro se fez sentir com a criação de uma instituição (com apoio da Fundação Ford) que se tornaria um fértil centro de debates da realidade brasileira. Falo do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Vários intelectuais de peso participaram dos debates do Cebrap. Muitos deles se tornaram ministros no governo do futuro Presidente. Pedro Malan, Celso Lafer, Francisco Weffort. A estes se agregaram vários outros intelectuais de muita expressão na vida política do país. É o caso, entre outros, de Bolívar Lamounier, Octavio Ianni, José Arthur Giannotti, Paul Singer e Celso Furtado.
Foi nos tempos do Cebrap que ocorreram os primeiros contatos do intelectual com um líder sindicalista que, como ele, seria um ator de relevante importância na vida política brasileira nos anos vindouros: Luís Inácio da Silva — o Lula. FHC começava a debutar na política do país. Lula era visto, pelos pesquisadores do Cebrap, como mais um objeto científico que merecia ser estudado ante o símbolo do emergente poder sindical que ele já representava. Anos mais tarde, o líder sindicalista acabaria por ser um importante cabo eleitoral no primeiro cargo político que FHC viria a candidatar-se: o de senador por São Paulo. Como é do conhecimento de todos, elegeu-se o filho do general Leônidas como primeiro suplente de André Franco Montoro.
O ano de 1982 foi de despedida de um lado muito presente na vida de Fernando Henrique Cardoso: o acadêmico. Nesse ano, foi convidado a ministrar aulas numa das mais importantes universidades dos Estados Unidos, a de Berkeley, na Califórnia. Passou um semestre por lá. Nessa época, despedia-se da universidade um dos ícones da sociologia mundial: o alemão Jürgen Habermas. Voltava o eminente pensador de renome mundial para sua Alemanha natal. FHC foi convidado para substituí-lo na condição de professor titular. Eis sua polida resposta ao chefe de Departamento de sociologia de Berkeley: “Professor Bellah, fico lisonjeado. Mas só poderei aceitar sua oferta se também me garantir um assento no Senado americano. Caso contrário, terei que recusar, pois estou para me tornar senador no Brasil”. Dito e feito. Com a eleição de Franco Montoro para o governo de São Paulo, FHC assumiu de vez e em tempo integral o outro papel decisivo em sua vida: o de político. Despediu-se assim de uma rica vida acadêmica que tanta respeitabilidade lhe trouxe nos cenários nacional e internacional. Era agora político em tempo integral. A visibilidade do intelectual de respeito entre seus pares assumia uma nova faceta mais ampla perante o país.
Nessa etapa da travessia de Fernando Henrique, veio um acidente de percurso chamado Jânio Quadros. A certeza da vitória do filho do general Leônidas Cardoso se tornou uma derrota para quem literalmente sentou na cadeira de prefeito antes do tempo.
Em 1988, o PSDB surge como uma alternativa de centro-esquerda ao velho PMDB, que, naquela época, já caminhava a passos acelerados para os braços do fisiologismo expresso pelas oligarquias regionais. A embrionária democracia brasileira elege, então, “o caçador de marajás” Fernando Collor, que, de desastre em desastre, acabou sendo rifado pelas instituições brasileiras que expressavam o sentimento das ruas.
“O primeiro presidente eleito pela população em nossa tão apregoada nova era democrática caía em desgraça, e mais uma vez o Brasil era objeto de escárnio no mundo inteiro”, avalia FHC a respeito do triste episódio. Collor cassado, assume seu vice Itamar Franco, que faz de Fernando Henrique ministro das Relações Exteriores de seu governo. Vivíamos os primeiros anos da globalização e isso significava, para um ministro das Relações Exteriores: constantes viagens com o objetivo de consolidar a imagem internacional do país.
Mas existia uma pedra no caminho que incomodava há décadas a vida dos brasileiros, a chamada inflação. E foi para combatê-la que Itamar Franco tomou a decisão de nomear Fernando Henrique Cardoso para o espinhoso cargo de ministro da Fazenda. FHC transcreve em seus escritos o diálogo, entre ele e Itamar, por ocasião de sua nomeação para o comando daquele ministério que mudaria os rumos de sua vida política.
“Tomei a liberdade de nomeá-lo ministro da Fazenda! — anunciou Itamar, como se de repente tudo estivesse resolvido no mundo. — Sua nomeação repercutiu muito bem aqui. A reação está sendo excelente! — Mas, Itamar, o que é que eu vou fazer agora? — Ora, faça o que quiser — retrucou o presidente, despreocupado. — Contrate quem quiser e demita quem quiser. Mas lembre-se de que é preciso que esse problema da inflação seja resolvido. Tenho certeza de que vai se sair bem. Desejo-lhe sorte!.”
E assim chegamos aonde começamos: na elaboração do Plano Real e o que isso significou na travessia de Fernando Henrique Cardoso: o passaporte para a Presidência da República.
Nas ondas do plano real
Creio que, nessa etapa da travessia de Fernando Henrique Cardoso, estamos aptos a responder uma instigante pergunta: por que o Plano Real deu certo e seus predecessores não?
Por vários motivos. O principal deles se explica em virtude das qualidades de quem liderou o processo de concepção do Plano Real. O filho do general Leônidas foi o homem certo, colocado no momento certo, para lidar com uma situação histórica a qual ele plenamente conhecia. Seus estudos pioneiros, expressos no clássico “Capitalismo e Desenvolvimento da América Latina”, possibilitaram a FHC e Enzo Faletto delinearem, já no início dos anos de 1960, os primeiros sintomas do que viria de fato a ocorrer na década dos anos de 1990, com o acirramento da globalização. Foi capaz de perceber, com facilidade, o momento histórico que estava vivenciando o país. Ademais, tinha FHC sólida formação intelectual para entender complexos argumentos que lhe eram expostos pela brilhante equipe de economistas cooptada pela sua inconteste capacidade de liderar. Uma liderança não só intelectual, mas pragmática o suficiente para lidar como os mais diferentes interesses corporativos tão arraigados no Congresso Nacional. Para navegar nas ondas do Real, fazia-se necessário um timoneiro que soubesse conduzir o navio nas turbulentas águas da globalização. Portanto, ter um líder que sabia das coisas e tinha jogo de cintura para lidar com complexas situações foi a primeira razão do sucesso do Plano Real. Mas existem outras razões que igualmente muito contribuíram para que o Brasil vencesse a inflação.
A primeira delas se centra no diagnóstico correto expresso que as causas da inflação residiam no combate ao déficit público. Ou seja, o gigantismo estatal fazia com que o Estado gastasse mais do que sua capacidade de arrecadação: “O déficit estimado para o ano seguinte, 1994, era de 20 bilhões de dólares — num orçamento de aproximadamente 90 bilhões”, aponta FHC.
O que também contribuiu para o sucesso dessa travessia em torno da estabilização da economia brasileira foram os três elementos que fundamentaram o Plano Real, quais sejam: o nome Real, os cortes orçamentários que requeriam negociações com o congresso e a criação da Unidade Real de Valor (URV). Exploremos esses elementos que estruturaram o plano de estabilização. Para isso, recorramos ao que nos relata FHC a respeito do assunto.
Quanto ao significado do nome: “Ao denotar realeza, ele [o Real] nos remetia à moeda do mesmo nome na era colonial, conferindo-lhe certo ar de continuidade histórica”. Quanto aos cortes orçamentários: “Através desse fundo [Fundo de Emergência Social], o congresso basicamente sedia 15 bilhões de dólares de gastos governamentais vinculados constitucionalmente, cuja alocação ficava agora a critério do Ministério da Fazenda”. Em relação à criação da Unidade Real de Valor (URV): “Precisávamos de um mecanismo que nos permitisse gradualmente desacelerar de uma inflação de 3.000 por cento para três por cento”.
Dito de outro modo: se fosse possível traduzir numa equação o sucesso do plano Real, creio que a mais adequada seria esta: Plano Real = capacidade de liderança do gestor + elevada competência da equipe econômica.
A liderança se fez necessária não só para apontar rumos incertos, como também para negociar politicamente com o congresso os cortes orçamentários. Para que isso ocorresse, era preciso enorme capacidade política, ainda mais num congresso como o nosso, repleto de interesses dos mais diversos. Aliado a isso, só o carisma de um líder foi capaz de aglutinar em torno de um propósito profissionais de reconhecido talento. Fernando Henrique Cardoso, e não Itamar Franco, tinha credenciais para isso. Olhando pelo retrovisor da travessia do ex-presidente, certamente, agora, sabemos que a mão invisível do general Leônidas Cardoso e sua infinita curiosidade intelectual se tornaram o combustível e a referência que equiparam o filho para a busca sem fim do conhecimento. Se existe um pai do Plano Real, este pai é, sem dúvida, Fernando Henrique Cardoso.
A entrada para a história
O sucesso do plano de estabilização foi de imediato percebido pela população, fato que elevou às alturas o capital político de Fernando Henrique ao ponto de o eleger e reeleger presidente da República. No poder, FHC implementou um governo de reformas com objetivo de afirmar o país num mundo que se globalizava cada vez mais. País que necessitava do capital internacional para se inserir nessa nova ordem. Creio ser desnecessário nos defrontarmos com desagregações de seus dois governos. Faltaria espaço para isso.
Fernando Henrique Cardoso, na maturidade dos seus 82 anos, é hoje uma figura de referência no país e no contexto internacional. Desfruta do respeito e da intimidade de importantes chefes de Estado. Bill Clinton, ex-presidente dos Estados Unidos, Tony Blair, ex-primeiro-ministro da Inglaterra, e Jacques Chirac, ex-presidente da França, para não citar tantos outros que estão entre seus amigos mais próximos. O Real veio para ficar.
Creio que ainda resta uma indagação conclusiva para, enfim, encerarmos estes escritos: que legado deixará o filho do general Leônidas para a história? Não nos parece pretensioso colocar esse estadista no mesmo patamar de outros dois grandes estadistas do Brasil Republicano: Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek.
Getúlio Vargas foi o grande construtor de instituições que se tornaram os nervos do Estado brasileiro, fundamentais para a construção do Brasil moderno. Isso possibilitou que, anos mais tarde, outro grande estadista brasileiro, Juscelino Kubitschek, levasse o desenvolvimento ao interior do país. Brasília, a rodovia Belém-Brasília, as usinas hidroelétricas, a industrialização do país do qual a São Paulo moderna é a face mais visível são bons exemplos da nova cara que passou a ter o Brasil após os anos dourados da era JK.
Fernando Henrique Cardoso não foi um tocador de obras como JK. Mas foi construtor de instituições nos moldes de Getúlio Vargas. Como JK, soube cooptar técnicos de elevado nível para com eles governar. Fez uso da imaginação política como forma de governo. Deixa-nos o legado da estabilidade econômica. Não restam dúvidas de que, ao findar sua travessia, entra para a história como um dos três grandes estadistas do Brasil Republicano.
Salatiel Soares Correia é engenheiro e mestre em Planejamento pela Unicamp.