O crítico fala de Heleno Godoy (não se toleram), Miguel Jorge, Yêda Schmaltz, Edival Lourenço, Valdivino Braz, Maria Helena Chein, Carmo Bernardes

Na terça-feira, 14, o Jornal Opção recebeu o poeta, crítico literário e professor universitário (é o aposentado menos aposentado da história) Gilberto Mendonça Teles em sua redação. O Mestre (com “M” maiúsculo) chegou acompanhado do promotor de justiça e doutor em História Jales Mendonça — presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (onde faz uma gestão inovadora, reconhecida pelo poeta, que foi presidente do IHGG), do escritor, crítico literário e doutor em Agronomia Nilson Jayme e do escritor, professor e doutor em história Ademir Luiz. Da redação, participaram os repórteres Euler de França Belém e Italo Wolff (que, com imenso prazer, degravou e editou a entrevista. A voz baixa do bardo, além das conversas paralelas, deu um trabalho imenso ao jornalista).

Aos 90 anos, Gilberto Mendonça Teles usa uma bengala para se amparar. Porém, quando fala, com vivacidade esplêndida, o ouvinte pensa que está ouvindo um jovem. Mas não um jovem comum, e sim um crítico de lucidez extraordinária, uma voz iluminista. O corpo pode ser velho, mas o cérebro permanece ativo, atento ao país e à cultura de seu Estado, Goiás — que nunca abandonou. Está sempre lendo e criticando, com a maior boa vontade, autores da região (Goiás é sua Ítaca). Trata-se de um crítico empático, de rara perspicácia — dada sua excelente e rigorosa formação universal. Há uma ironia fina naquilo que escreve, inclusive quando, em tese, está escrevendo “a favor”. Mas não edulcora sua análise se a obra é ruim. Não aprecia, por exemplo, a literatura de Carmo Bernardes e Eli Brasiliense.

Gilberto Mendonça Teles é entrevistado por Ademir Luiz, Nilson Jaime, Jales Mendonça e Italo Wolff | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Sem papas na língua, Gilberto Mendonça Teles contou histórias curiosas sobre escritores. Certa feita, ao visitar a casa de um amigo, professor, flagrou-o com outro homem, também mestre. Ele não lembra quem estava no colo de quem. Deu os nomes, mas sugeriu que seria mais adequado não os divulgar, para não reforçar preconceitos e, possivelmente, incomodar as famílias. Provocado por um dos entrevistadores, relatou a história de sua paixão por uma mulher casada de Pirenópolis. Mas não quis revelar seu nome. “Por decoro e respeito.”

Nilson Jaime quis saber a opinião de Gilberto Mendonça Teles a respeito de trazer os restos mortais de Bernardo Élis, que estão na Academia Brasileira de Letras, no Rio de Janeiro, para Goiás, e ele foi taxativo: sugerindo que mais importante do que isto é republicar toda a obra do escritor de “Ermos e Gerais”, “O Tronco” e “Veranico de Janeiro”. É preciso recolocar seus livros em circulação. Remover os restos mortais do Rio não vai torná-lo mais conhecido.

Há pouco tempo, Gilberto Mendonça Teles disse que conversou com um doutorando em literatura que estava analisando um autor de São Paulo que já está fartamente estudado e sobre o qual seria difícil dizer algo “novo” e “relevante”. Por isso, sugeriu que estudasse um escritor goiano ou um escritor brasileiro menos conhecido. “A Universidade Federal de Goiás, que tem valor, precisa trabalhar um pouco mais os escritores do Estado. A crítica, se bem-feita, pode ajudar a apontar caminhos e firmar a reputação de escritores.”

Ruy Castro, jornalista e escritor: o “biógrafo” está enganado, pois o modernismo verdadeiro é o de São Paulo | Foto: Reprodução

Ademir Luiz perguntou se Gilberto Mendonça Teles aprovava a entrada do cantor e compositor Gilberto Gil, seu xará, na Academia Brasileira de Letras (onde, sustenta, foi barrado pelo ex-ministro da Educação Eduardo Portella). “A ABL tem escritores ruins. Aliás, de seus 40 membros, ao menos 25 não são escritores. Muitos entraram por política e amizade, não pela qualidade da obra. Não envio meus livros para os acadêmicos há 15 anos.”

Inquirido sobre uma frase de Millôr Fernandes — “quando José Sarney escreve a Língua Portuguesa grita de dor” —, Gilberto Mendonça Teles foi ponderado. “Aí há política, porque Sarney foi presidente e senador. Ele votou em mim para a ABL.”

O crítico literário Luíz Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, e o jornalista e escritor Ruy Castro falam em outro Modernismo que não o de São Paulo, que teria sido soterrado pela força dos paulistas. “Bobagem do ‘biógrafo’ [é assim que trata Ruy Castro]. No contexto da década de 1920, cadê a obra modernista relevante do Rio e de outros Estados? Não há. Poderiam falar de uma obra importante, ‘Luz Mediterrânea’, de Raul de Leoni [1895-1926], mas não a mencionam [diz que leu-a tanto que praticamente a decorou]. Então insisto: antes de 1922 não havia nada de modernismo, no sentido de algo denso, forte.” O livro de Ruy Castro criticado é “As Vozes da Metrópole — Uma Antologia do Rio nos Anos 20” (Companhia das Letras, 464 páginas).

“A Poesia em Goiás”: um dos livros referenciais de Gilberto Mendonça Teles

De acordo com Gilberto Mendonça Teles, Graça Aranha (autor de “Canaã”), que havia morado na Europa, decidiu, com seus aliados, fazer uma Semana de Arte Moderna no Brasil para se antecipar ao movimento modernista francês. “Acabou que os franceses brigaram e não fizeram seu ‘congresso do espírito moderno’.”

Gilberto Mendonça Teles diz que, bem antes da Semana de Arte Moderna de 1922, o poeta Manuel Bandeira já falava de modernismo. Ele dizia: “Olha, o verso livre está chegando. O futurismo vai trazer o verso livre”.

O crítico diz que a obra de Oswald de Andrade tem importância, mas não é uma “obra completa”. “E ele não era bom caráter.” O poeta tem mais simpatia por Mário de Andrade e, claro, Carlos Drummond de Andrade.

A crítica literária desapareceu dos jornais, diz Gilberto Mendonça. Prevalece, hoje, comentários sobre lançamentos. Mas não se trata de crítica. Ele escreveu crítica no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”. Deixou “O Globo” porque tentaram “mexer” numa de suas análises.

O crítico e poeta doou parte de sua biblioteca para a UFG e parte para a cidade de Bela Vista de Goiás, onde nasceu. “Para a UFG enviei os livros de crítica e história literária.” Ele diz que mantém 3 mil livros em sua biblioteca do Rio de Janeiro.

Gilberto Mendonça Teles conta que, anos atrás, ia de automóvel do Rio de Janeiro para Goiânia e vice-versa (a mãe ficava esperando na porta de sua casa, o que emocionava). Dormia em Uberaba, onde se encontrava com Vitor de Carvalho Ramos, irmão de Hugo de Carvalho Ramos, autor de “Tropas e Boiadas”, livro emblemático que influenciou de Bernardo Élis a Guimarães Rosa.

Saciologia Goiana: obra polêmica de Gilberto Mendonça Teles | Foto: Divulgação

 

A pergunta é: Gilberto Mendonça Teles ficará na história da literatura patropi como crítico literário ou como poeta? Um vai tragar o outro? É possível que não. Ele certamente ficará como crítico e poeta. Sua poesia, de sofisticação rara, dado seu preparo intelectual e intuições refinadas (fruto de estudo detido), certamente, quando lida com mais atenção, vai conquistar um lugar mais adequado na literatura brasileira. Talvez seja possível sugerir que o ofício de crítico por vezes obscurece seu trabalho (sim, trabalho) de poeta. Mas há, decerto, um lugar para o bardo de Bela Vista de Goiás entre Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto (mais relevante, por exemplo, do que os cultuados e citados Manoel de Barros e Mario Quintana — que se tornaram “vade mecum” da internet, notadamente o primeiro). O tempo firmará, ainda mais, sua poesia, que, filha dos clássicos e dos modernos, é inovadora, tem especificidade, não é mera citação. As influências estão digeridas e transformadas, com imensa independência, em sua poética. Sua poesia exige um leitor atento, mas não necessariamente especialista.

Gilberto Mendonça Teles disse que continua estudando e escrevendo. Ele não para. Falou de “Pequeno Sertão de Tutaméia” e “O Rumor Inaudível das Palavras” — seus estudos. Permanece interessado em Euclides da Cunha e Guimarães Rosa (e vale sublinhar que os dois são poetas, ainda que menores).

Entre as obras do crítico estão: “Poesia em Goiás” (um clássico), “Vanguarda Europeia & Modernismo Brasileiro”, “Drummond — A Estilística da Repetição”, “Camões e a Poesia Brasileira — e o Mito Camoniano na Língua Portuguesa”, “Escrituração da Escrita — Teoria e Prática do Texto Literário” e, entre outros, “A Ficção da Página”. É autor de “Saciologia Goiana”, “Brumas do Silêncio”, “Lirismo Rural — O Sereno do Cerrado”, “Linear G”, “Sonetos do Azul sem Tempo”.

O livro “A Ficção da Página — Seleção de Ensaios Sobre a Literatura Brasileira” é, de acordo com Gilberto Mendonça Teles, o “melhor” que pôde fazer, nos últimos tempos. O prefácio é do crítico dinamarquês Karl Erik Schøllhammer, que leciona na PUC e mora no Rio.

O crítico esteve na sede do IHGG e elogiou a gestão de seu presidente, Jales Mendonça, inclusive as parcerias com o Sicoob, empresários e pessoas físicas. “A instituição precisa de apoio financeiro tanto para se modernizar quando para preservar e conquistar novos arquivos para pesquisa.”

Ao final da entrevista, na portaria do Edifício Swiss Tower, na Nova Suíça, Gilberto Mendonça Teles caiu. Ante a preocupação dos próximos, disse logo: “Não me machuquei e, felizmente, não bati a cabeça”.

A entrevista é longa, leitor. Mas sugerimos que leia até o fim, pois ganhará muito e não perderá nada. Gilberto Mendonça Teles é uma lenda viva da crítica literária do país, não apenas de Goiás, onde, a rigor, não mora. Ele é um dos principais críticos da obra do maior poeta brasileiro — Carlos Drummond de Andrade. Era admirado tanto por Drummond, que lhe dedicou um poema, quanto pelo sociólogo, ensaísta e crítico literário José Guilherme Merquior, que considera “inteligentíssimo”. (Euler de França Belém)

Confira a polêmica entrevista de Gilberto Mendonça Teles
Gilberto Mendonça Teles, com seus livros; ao lado, o escritor Ademir Luiz | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Euler de França Belém — Como situa Basileu Toledo França (1919-2003), autor de “Pioneiros” e “Cavalo de Rodas”, na literatura: como escritor ou uma espécie de “historiador” que fazia literatura?

Gilberto Mendonça Teles — Em meu livro “A Poesia em Goiás” examino a poesia de Basileu Toledo França e falo mal. Digo que é um poeta que quer ser moderno mas não consegue. Por causa disso, ele começou a brigar comigo. Porém, como pesquisador, escreveu a “Música e Maestros”, o livro que o deixou conhecido em São Paulo, e é muito interessante. Entretanto, como poeta era ruim.

Ademir Luiz — Na quarta capa do livro “A Crítica e o Princípio do Prazer”, a crítica e poeta Darcy França Denófrio comenta sua participação em jornais e destaca a importância da imprensa em sua obra. Na sua opinião, qual o valor da visibilidade para o acadêmico?

Gilberto Mendonça Teles — Eu sou professor de Literatura e, em sessenta anos, nunca abandonei essa função. Falar publicamente o que penso é importante para mim, porque sempre fui professor. Além disso, os jornais foram muito importantes para juntar a intelectualidade de esquerda: Haroldo de Britto Guimarães [jornalista], José Godoy Garcia [poeta]. Bernardo Élis [1915-1997] era de esquerda mas não se manifestava. Fui colaborador do “Jornal Oió” desde o início. Escrevi poemas, dei entrevistas ao Domingos Félix de Sousa [crítico literário e poeta] e ao Antônio Geraldo Ramos Jubé [1927-2010].

Basileu Toledo França: poeta ruim e bom pesquisador | Foto: Reprodução

Italo Wolff — Como avalia a crítica literária de Antônio Geraldo Ramos Jubé?

Jubé não recebeu a atenção que deveria. Mas foi um grande crítico, com ampla visão de literatura. Como poeta também é muito bom e, apesar de não ter conseguido dar o salto para a contemporaneidade, domina a métrica antiga. Eu pretendia ajudá-lo a publicar em uma grande editora. Telefonei para o Jubé e pedi que organizasse todos seus livros em um volume só. Mas o goiano é muito preguiçoso (risos).

Euler de França Belém — Ao invés de preguiça, não seria uma timidez atávica?

Acho que sim. Psicologicamente falando, deve ser por aí. O certo é que Jubé não organizou o livro que as editoras José Olympio e Civilização Brasileira, do Enio Silveira, poderiam publicar..

Jales Mendonça Guedes — Como avalia a Academia Goiana de Letras (AGL)?

Bernardo tinha uma ideia errada sobre a AGL. Ele achava que só quem morava em Goiás podia pertencer à Academia. Colocou isto no estatuto. Eu, que moro há 50 anos fora, não poderia pertencer à AGL? Isso é de um provincianismo muito forte.

Antônio Ramos Jubé, crítico e poeta | Foto: Arquivo da família

Jales Mendonça Guedes — Goiás teve só um representante na Academia Brasileira de Letras (ABL) e no Supremo Tribunal Federal (STF). O que é essa timidez, afinal?

Bernardo Élis, com quem convivi muito, foi meu vice-diretor no instituto Centro de Estudos Brasileiros (CEB), e era muito tímido. Ele não tomou as decisões que poderia tomar. Por exemplo: os alunos, uns 15, não queriam Amália Hermano Teixeira como professora de História de Goiás. Pediram sua substituição por escrito para mim. Então pedi ao Bernardo que verificasse o que estava acontecendo. Bernardo gaguejava, não se decidia. Pedi que levasse o problema à dona Amália, mas ele se recusou, afirmando que eram amigos. Fui à casa dela, na Rua 24, se não me engano, mostrei o pedido escrito e pedi que compusesse uma resposta mostrando o que havia de certo e de errado nas queixas, com a promessa de que eu iria trabalhar a questão com os alunos. Passou-se uma semana, Amália não me respondeu. Cobrei. Um mês depois, pedi ao Bernardo que conversasse com ela, mas Amália Hermano havia perdido a mensagem escrita. Resultado: Amália Hermano me enrolou. Ela podia ter sido beneficiada com meu depoimento, mas não, preferiu me despistar. É o tipo de gente antiga de Goiás que não se atualizou.

Jales Mendonça Guedes — Bernardo Élis era um desses tímidos e conseguiu chegar à ABL?

Euler de França Belém — Bernardo Élis se admitia como tímido. Disse que não ficou no Rio de Janeiro por causa de sua timidez.

Ajudei muito Bernardo na questão da Academia Brasileira de Letras. Coloquei o nome do Bernardo Élis como candidato na Academia e, no dia em que foi eleito, eu era a única pessoa que estava na casa dele. Toda hora pegávamos o telefone para verificar as notícias, enquanto ainda estavam votando. Machado de Assis era um homem gago, mas, quando fundou a Academia, fez um discurso de quinze minutos sem gaguejar. Ele escreveu todo o discurso e leu várias vezes em voz alta, sublinhando as partes em que gaguejava. Eu contei isso para o Bernardo, que fez esse exercício para não gaguejar.

Bernardo Élis: é preciso repor sua obra em circulação | Fotos: Reproduções

Euler de França Belém — Houve articulação de Golbery do Couto Silva e Austregésilo de Athayde para evitar a vitória de Juscelino Kubitschek.

Sim, se fez política. Mas eu mesmo fui vítima de política. Mas Bernardo Élis era de esquerda.

Por que o sr. não conseguiu a entrar na Academia Brasileira Letras?

Tenho o prêmio Olavo Bilac de poesia (o único prêmio de poesia que a ABL concedia). Tenho o prêmio Sílvio Romero de crítica. E tenho o Prêmio Machado de Assis (a gente não concorre, a gente ganha). Quando viram que eu tinha esses prêmios, o secretário da Academia, Abgar Renault (nós tínhamos o Drummond como amigo em comum) me ligou e disse: “Você tem 25 votos para o Prêmio Machado de Assis; você já ganhou. Agora, temos uma vaga para a Academia. Você escolhe: o prêmio ou a vaga?” O Prêmio era o equivalente a R$ 50 mil. Eu era recém-chegado no Rio de Janeiro e não tinha um emprego bom. Eu disse que preferia o prêmio. Abgar Renault respondeu: “Tudo bem, você se candidata outra vez”. Mas me candidatei três outras vezes e não entrei. Da última vez em que me candidatei, precisava de 19 votos; eu consegui 18. Eduardo Portella ofereceu um emprego no Estado para um jornalista membro da ABL, Antônio Olinto, não votar em mim. Então nunca mais me candidatei.

Ademir Luiz — Por que o ex-ministro da Educação Eduardo Portella não queria que o sr. entrasse na ABL?

Voltei para o Brasil depois de ter passado quatro anos trabalhando no Uruguai. Tinha a opção de voltar a ser professor da Universidade Federal de Goiás (UFG) ou ser professor na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Escolhi a PUC-Rio e comecei a trabalhar, escrever. Os críticos do RJ eram provincianos também — não havia um crítico de jornal que avaliasse com honestidade as obras. Comecei a aparecer fazendo artigos sobre literatura em “O Globo”, no “Jornal do Brasil” e, de uma hora para outra, escrevi algo que molestou Eduardo Portella, que era considerado o maior dos críticos.

Nilson Jaime — O sr. se arrepende de ter dedicado “Saciologia Goiana” a Eduardo Portella?

São erros que a gente comete na vida. Mas naquela época não foi erro. O livro é dedicado a ele apenas na primeira edição, depois tirei. Nossa inimizade foi firmada quando eu, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fui chamado para participar de uma banca examinadora de um doutorado orientado pelo Eduardo Portella. Eu li a tese; tinha erros de gramática, todo tipo de erro. Eram cinco pessoas para examinar o doutorando. Eu falei na banca: “Um doutorado não pode ter erros de ortografia assim”. Comentei também outros problemas técnicos. A antipatia do Eduardo Portella, que era orientador da tese, foi selada ali.

Eduardo Portella: o ex-ministro que impediu a entrada de Gilberto Mendonça Teles na Academia Brasileira de Letras | Foto: Reprodução

Italo Wolff — Por que o sr. dedicou “Saciologia Goiana” a Eduardo Portella?

“Saciologia Goiana” foi dedicado a Eduardo Portella em primeiro lugar pelo seguinte motivo. Na ditadura militar, com o AI-1, o único decreto assinado diretamente pelo presidente Castello Branco foi sobre o Centro de Estudos Brasileiros, que eu presidia. Ele me exonerou da direção — uma honra para mim. Quando veio a anistia, Eduardo Portella era ministro da Educação, indicado pelo amigo Guilherme Figueiredo, irmão do presidente João Figueiredo. Um dia, eu estava em casa quando tocou o telefone e a secretária do ministério me anunciou que o ministro queria falar comigo. Eduardo Portella disse: “Gilberto, acabo de assinar sua volta ao serviço público”. Em agradecimento, coloquei o nome dele no meu livro que estava saindo. Depois retirei por conta da campanha dele contra mim na Academia Brasileira de Letras.

Euler de França Belém — O sr. está em boa companhia: o poeta Carlos Drummond de Andrade também não fez parte da ABL.

Carlos Drummond de Andrade me aconselhava a não mexer com isso. Eu, muito entusiasmado, tentei mexer.

Jales Mendonça Guedes — O sr. foi estatístico no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) por 14 anos e coordenou o livro “Enciclopédia dos Municípios Brasileiros – seção Goiás e Mato Grosso”. Como foi esse trabalho?

É um livro que pouca gente conhece. Eu trabalhava no IBGE como chefe de estatística do interior e comecei a fazer um dicionário toponímico de Goiás. O presidente do IBGE, no Rio de Janeiro, pediu um livro sobre Goiás e o inspetor regional, sabendo que eu trabalhava naquilo, me pediu para coordená-lo. Passei um mês no Rio de Janeiro aprendendo a trabalhar em grandes volumes. Quando voltei para o IBGE em Goiânia, cuja sede ficava na Avenida Tocantins número 63, comecei a trabalhar naquilo com uma equipe de dez pessoas. Passávamos a noite redigindo; tudo passava por mim. Depois, fomos a Cuiabá, no Mato Grosso, onde ficamos dois meses orientando o grupo de lá. Assim fizemos a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros Volume 36.

Ademir Luiz — Como foi sua decisão de ir ao Rio de Janeiro definitivamente?

Eu trabalhava como professor no Uruguai em novembro de 1970, mas fui cassado pelo AI-5 e precisei voltar ao Brasil. Me propuseram que terminasse de ministrar os cursos e voltasse ao Rio de Janeiro em fevereiro de 1971. Quando meus cursos terminaram e chegou a hora de voltar, eu já havia sido anistiado. Cheguei ao Rio de Janeiro com dois convites para trabalhar, um como professor titular por concurso público na UFG e outro como professor titular na PUC-Rio. Eu não quis voltar para Goiás, porque havia muito dedo-duro quando deixei o Estado alguns anos antes. Qualquer suspeita, as pessoas corriam ao coronel de Brasília que dirigia o Ministério da Educação para te delatar.

Alceu de Amoroso Lima

Italo Wolff — O sr. foi professor da Universidade Federal Fluminense.

Os alunos da Universidade Federal Fluminense (UFF), de Niterói, me convidaram para fazer uma conferência sobre Alceu Amoroso Lima, o grande Tristão de Athayde. Eu havia escrito dois livros de teoria literária sobre a obra de Alceu Amoro Lima publicados pela Universidade de São Paulo (USP). Na conferência, falei o que poderia falar sobre Tristão de Athayde. Quando terminei, o reitor da universidade — José Raymundo Martins Romêo — me pediu um abraço. Ele era fã de Tristão de Athayde, e me convidou para trabalhar ali. Eu disse que não poderia porque era professor da UFG. Ele respondeu que era o diretor dos reitores, e que podia me transferir quando quisesse. Eu aceitei. No dia seguinte, veio a minha transferência como professor titular para a UFF, onde me aposentei.

Nilson Jaime — O Centro de Estudos Brasileiros (CEB) era mesmo um antro de comunistas?

Bobagem, não tinha nada de comunista. O CEB tinha, claro, o Bernardo Élis [que foi ligado ao Partido Comunista Brasileiro, PCB], que deixou entrar um rapaz de Minas Gerais da Organização Revolucionária Marxista-Política Operária (Polop). [Gilberto Mendonça Teles não lembra o nome, mas possivelmente o “rapaz” era Juarez Guimarães de Brito, que, acuado pela repressão, se matou.] Era uma daquelas coisas da época: os comunistas ouviram falar que havia um centro de estudos e quiseram entrar. O camarada era pesquisador, então deixamos.

Agostinho da Silva: filósofo e escitor português | Foto: Reprodução

Jales Mendonça Guedes — Como foi a criação do CEB?

Em 1962, Colemar Natal e Silva, reitor da UFG, foi a Brasília almoçar com o escritor e antropólogo Darcy Ribeiro, então ministro da Educação do governo de João Goulart. Darcy Ribeiro apresentou a ele o professor português que trabalhava no instituto de estudos portugueses da Universidade de Brasília (UnB), Agostinho da Silva [1906-1994, filósofo, poeta, ensaísta, filólogo) — um grande homem que pisou em Goiás e que não foi visto. Colemar Natal e Silva o convidou para uma conferência. Agostinho da Silva chegou a Goiânia na semana de lançamento do meu livro “Pássaro de Pedra” e quis me visitar no IBGE. Conversamos meia hora, ele me convidou para sua conferência. Agostinho da Silva concluiu sua conferência dizendo que Goiás tinha muita gente nova e citou alguns nomes — entre eles o meu. Colemar Natal e Silva ouviu o elogio ao meu nome e decidiu me chamar para ajudar a montar o CEB. Então, quando fui para o Centro, já tinha algumas referências. Escolhi alguns nomes para trabalhar comigo: Bernardo Élis, Lena Castello Branco Ferreira de Freitas e outros. O estatuto do CEB indica que não tinha nada de comunista. Nossa proposta era apenas estudar o Brasil de forma diferente da que vinha sendo estudada. Estudar fora das universidades, fazer o povo conhecer o Brasil. Entrou “o povo”, aí pronto. As pessoas contrárias ao Colemar Natal e Silva usavam esse tipo de discurso para alegar que o reitor estava colocando comunista ali dentro, e os militares acreditavam, claro.

Nilson Jaime — O fato de Bernardo Élis ter sido do Partido Comunista ajudou a consolidar essa imagem de comunista do CEB perante os militares? 

É possível que sim. Me pediram para assinar pelo CEB um diploma de conclusão de um curso de reforma agrária. Eu não assinei, mas Colemar Natal e Silva autorizou. Um grande amigo meu, o professor Waldir Luiz Costa, da PUC-GO, me telefonou para avisar que os militares estavam atrás de mim. Ele me sugeriu que me encontrasse com um tal coronel Danilo de Sá. Me encontrei com o militar no dia do lançamento do meu livro “Goiás e Literatura”. Cheguei no batalhão para conversar com Danilo de Sá e ele logo me perguntou quem eu era. Eu disse: “Gilberto Mendonça Teles”. Ele: “Ah! O comunista!”. Ele queria saber por que eu não havia assinado o diploma. Eu disse: “Não assinei porque não existiu esse curso”. Ele queria que eu dissesse que não havia assinado porque sabia que os militares tomariam o CEB caso assinasse. Mas eu dizia: “Nada disso, não assinei porque não houve esse curso, o CEB não trabalha com isso. O senhor olhe as atas do instituto”. O coronel Danilo de Sá ameaçou me prender, pedir minha exoneração. Eu disse que ele não mandaria me prender porque tinha de lançar um livro naquela tarde em Brasília, dei uma cópia a ele e falei: “Mande alguém ler para você e veja se tem algo de comunista aqui dentro”.

Colemar Natal e Silva: ex-reitor da UFG | Foto: Reprodução

Nilson Jaime — Como terminou o CEB?

Em 1964, fui ao Rio de Janeiro pedir autorização para continuidade do CEB ao Conselho Federal de Cultura. Não bastava autorização da Universidade, você tinha de ter a anuência do Estado. Eles autorizaram. Eu peguei o voo de volta na manhã seguinte e, a bordo do avião, li no “Jornal do Brasil” o meu nome na seção “cassados em Goiânia”. Na verdade, fui exonerado do Centro; todos noticiaram errado. Não fui cassado, portanto continuei como professor de Teoria Literária e Literatura na UFG. Quando veio o AI-5, em 1968, eu estava no Uruguai e essa exoneração me custou caro, porque viram que eu tinha tido problemas em 1964.

Ademir Luiz — O sr. conheceu o crítico literário Otto Maria Carpeaux?

Um dia, no Correio, no Centro de Copacabana, vi um homem branco e velho. Era Otto Maria Carpeaux. Mas não conversamos.

Euler de França Belém — O sr. considera Otto Maria Carpeaux um grande crítico ou um crítico impressionista?

Um grande crítico é aquele que escreve impressionisticamente, ou estilisticamente, ou estruturalisticamente, ou psicanaliticamente, ou o que quer que seja. É alguém que fala de um livro pelo seu conhecimento, que pode seguir uma linha filosófica ou não. Otto Maria Carpeaux tem um livro imprescindível: “Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira”. Está desatualizado, mas é bom. Um exemplar permanece na minha biblioteca. Como sabem, doei meus livros para a biblioteca da UFG.

Ademir Luiz — Em determinado momento da carreira, Otto Maria Carpeaux disse que abandonaria a crítica para se dedicar à política. O sr., que foi perseguido e sempre teve a política se intrometendo no seu trabalho, como analisa a atitude dele?

José Godoy Garcia, um bom poeta goiano, escreveu um artigo elogiando meu primeiro livro, “Alvorada”, de 1955, jornal “Folha de Goiaz”. Ele era comunista. À medida que fui “crescendo”, ele se manteve estagnado literariamente. Eu lia outros livros, tinha contas abertas em São Paulo e no Rio de Janeiro para comprar os livros de lá. Godoy Garcia, que não lia nada, me dizia: “Você sabe tudo de técnica. Então vamos fazer uma colaboração, eu dou a ideia e você escreve o livro”.

Otto Maria Carpeaux: um grande crítico, segundo Gilberto Mendonça Teles | Foto: Reprodução

Italo Wolff — O sr. diz que seu livro “A Crítica e o Princípio do Prazer” era completamente desconhecido por aqui. E disse que não existe crítica literária em jornal goiano. Ao que o sr. atribui essa falta de interesse?

É um pouco de ignorância dos diretores dos veículos, que creem que crítica literária não dá dinheiro, não atrai atenção do público. O que existe é compadrio entre os escritores e aqueles que falam sobre as obras. Conheço você, então não falo mal do seu livro. Os jornais não querem pagar pela função da crítica séria, então ser honesto sobre as obras é um risco sem retorno. Há três anos, quando “O Popular” me convidou para manter uma coluna, eu disse que gostaria de escrever apenas sobre livros, fazer crítica em jornal, mas eles não quiseram. Eu queria resenhar livros publicados em Goiânia.

Nilson Jaime — O sr. fala que o poeta precisa trabalhar, não se fiar apenas em inspiração. O sr. disse que seu novo livro de poemas levaria em conta a crítica, o leitor e as livrarias (o mercado). Já falou também da crítica “psicanalhógica”.

É a psicanálise barata que tenta explicar a literatura, e não chega à crítica nem à psicanálise. Não é o que a gente sabe e quer mostrar na crítica — o livro é que atrai a gente, atrai um tipo de apreciação. Se o enredo tem personagens infiéis, incestuosos, etc., o crítico pode verificar a importância de se usar psicanálise na apreciação. O crítico em Goiás fala da psicanálise sem que ela tenha importância alguma para a estrutura, para o tema.

Ademir Luiz — A psicanálise tem peso na sua análise?

Muito pouco. Meu doutorado é em estilística. Eu cheguei ao Rio de Janeiro com essa bagagem em um momento que a crítica no Rio embarcava no estruturalismo, como meu colega da PUC-Rio Luiz Costa Lima, um dos homens mais importantes da crítica estruturalista. Chegou um momento em que ele mudou. Então fui influenciado por isso. Eu estudava e incorporava ao meu saber o que achava bom nas outras escolas. A psicanálise foi assim. Li Freud e incorporei algumas coisas. Tenho até um verso que diz: “Tá bem, meu bem, o meu complexo existe, mas por favor me deixe em paz. E ao ver alguém roncando de cuíca e andando de cueca nos jornais, tomou a forma de jaguatirica e, antes que lhe dissessem Freud explica, foi pescar em Goiás”. Foi publicado no livro “Ícone de Sombras”, em 1995.

Euler de França Belém — Há um humor ferino e inteligente na sua poesia. O sr. ganhou “inimigos” com “Saciologia Goiana”. Entre seus rivais está um importante crítico, poeta e prosador, Heleno Godoy. Qual é a raiz da crise entre os srs.?

“Saciologia Goiana” chegou à 10ª edição. Quando publiquei “A Poesia em Goiás”, Heleno Godoy, com 17 ou 18 anos, escreveu um artigo muito besta sobre mim. Ele era meio ignorantão. Era comandado por alguém (do Rio Grande do Sul) do qual não me lembro o nome e não gostava de mim. Eu, mais besta ainda, respondi. Nunca mais nos entendemos. A revista de poesia “Para Todos”, do Rio de Janeiro, uma vez me pediu uma seleção de escritores de Goiás que deveriam ser lidos em todo o Brasil. Eu indiquei o nome do Heleno Godoy e ele publicou, mas nunca me agradeceu. Continuamos divergindo. Eu só leio aquilo que me mandam — ele nunca me enviou nada e eu não li as coisas recentes dele.

Heleno Godoy, poeta, prosador e crítico literário | Foto: Ube-Goiás

Euler de França Belém — De fato, Heleno Godoy se interessou pela poesia práxis, de Mário Chamie, um rival dos poetas concretos Haroldo de Campos, Décio Pignatari e Augusto de Campos. Conheço razoavelmente a poesia de Heleno e acho que superou o “mestre”. É um poeta que conhece a poesia universal e se tornou, digamos, bem brasileiro, mas não provinciano. Precisa ser lido com mais atenção, não acha?

Essa é uma questão central para mim. Eu nunca escrevi poesia goiana, meus livros se chamam “A Poesia em Goiás”, “O Conto Brasileiro em Goiás”. Porque acho que o que é bom e feito aqui é brasileiro. As pessoas não contam como literatura nacional, consideram apenas regional. Acho ainda que não existe uma característica que marque o que é goiano. Antropologicamente, estilisticamente, não há essa qualificação. Existem vieses, mas as obras daqui também estão carregadas de qualidades de outros lugares.

Euler de França Belém — Heleno Godoy tem um preparo intelectual acima da média e sua literatura é de qualidade. Tanto que Luiz Costa Lima, um dos mais importantes críticos do país, elogiou um de seus livros. O sr., que se interessa pela literatura escrita em Goiás, não deveria ler sua obra sem preconceito? Heleno pode ser considerado um chato, mas tem uma obra respeitável. Ou seja, é preciso dissociar a obra do homem que a escreveu.

Heleno fala mal de mim. Ele anda atrás de mim: saí da Católica, ele foi para a Católica, saí da Federal e ele foi para a Federal. Na quarta edição da “Poesia em Goiás”, no prefácio digo que, se fosse fazer uma edição revisada, falaria de outros poetas.

Euler de França Belém — O sr. não considera Heleno Godoy como o poeta mais modernista de Goiás?

O fato de Costa Lima elogiar a obra de Heleno Godoy não significa que a obra é importante. Só leio aquilo que me mandam, ele nunca me mandou seus livros. Então, insisto: não conheço sua obra.

Yêda Schmaltz: uma poeta de méritos | Foto: Reprodução

Euler de França Belém — Como avalia a poesia de Darcy França Denófrio e Yêda Schmaltz?

Já no lançamento do primeiro livro da Yêda, “Caminhos de Mim”, eu disse que era uma poetisa com muito futuro. Ela foi uma poetisa realmente muito importante. Escrevi o prefácio de um dos primeiros livros da Darcy França Denófrio. É muito boa, tem todas as características da boa poetisa e boa crítica.

Yêda Schmaltz fez um retrato meu, que está num apartamento meu, no Rio de Janeiro. A poesia de Darcy Denófrio é muito boa. O que faz boa poesia é como o criador trabalha o tema, o que as duas fazem muito bem. O ritmo do verso combina com o tema.

Euler de França Belém — Do Grupo de Escritores Novos (Gen), quem salva como poeta e prosador?

A Yêda Schmaltz. Heleno Godoy eu não conheço bem, mas tenho receio de que, no Gen, ele tenha embarcado na canoa furada de Mário Chamie — a poesia práxis. Chamie cativou gente de fora com o discurso, mas a poesia práxis era pequena e cheia de jogo de palavras sem sentido.

Nilson Jaime — A falta de crítica atrapalha a qualidade da literatura, não é?

Crítica de compadrio não corrige rumos e não incentiva o avanço do poeta. Goiás precisa de crítica verdadeira, que abra caminhos.

Euler de França Belém — Não digo que o sr. faça crítica de compadrio. Mas li uma crítica do sr. que parece ser “crítica de amigo”. Não estou dizendo que a poesia examinada pelo sr. é ruim, só que faz um esforço tremendo para torná-la importante.

Uma crítica empática e perceptiva não é o mesmo que compadrio. O crítico tem de fazer um esforço enorme para entender e explicar o trabalho dos poetas e dos prosadores. É o que faço.

“Hugo de Carvalho Ramos, autor de ‘Tropas e Boiadas’, lançou as raízes para o que se pode chamar de literatura goiana via regionalismo”

Ademir Luiz — O sr. fala sobre a gramática em Hugo de Carvalho Ramos como um fundamento para a construção de uma goianidade.

Sim. Publiquei esse artigo sobre “Tropas e Boiadas”, no jornal “O Popular”, quando ainda morava em Goiânia. Hugo de Carvalho Ramos lançou as raízes para o que se pode chamar de literatura goiana via regionalismo. Ele criou a personagem do Saci, que Monteiro Lobato depois plagiou. Hugo publicou “O Saci” em 1917, e antes publicou no jornal “Goyáz” um artigo que escreveu com dez anos sobre o Saci. Conheci Guimarães Rosa quando eu morava no Uruguai, porque seu secretário era o diplomata goiano William Agel de Mello. Ele nos apresentou e conversamos por quase uma hora em que eu só consegui falar uma coisa: “Professor, o sr. conhece ‘Tropas e Boiadas’?” Ele respondeu que sim, que sua obra estava carregada da influência de Hugo de Carvalho Ramos. Hugo fundou uma goianidade que bate lá no passado. Mas de lá pra cá, essa goianidade não se firmou, ninguém levou adiante essa tradição regionalista.

Eu reavaliaria minha análise sobre Hugo de Carvalho Ramos — a favor dele. Por sinal, minha tese de doutorado é sobre Hugo de Carvalho Ramos.

Italo Wolff — Explique melhor a história de Monteiro Lobato ter plagiado o saci?

Hugo de Carvalho Ramos escreveu sobre o saci desde os dez anos de idade. Publicou no “Tropas e Boiadas” em 1917, quando Monteiro Lobato morava no Rio de Janeiro e montava sua editora. Ele jamais escreveu sobre “Tropas e Boiadas”. Em 1921, Hugo de Carvalho Ramos suicida-se. Monteiro Lobato conseguiu editar “Tropas e Boiadas” em 1922. As primeiras publicações de Lobato que citam o Saci são de 1922. Ele conhecia com toda certeza a obra de Hugo de Carvalho Ramos. Monteiro Lobato esteve pesquisando sobre o folclore brasileiro nos Estados da Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro e interior de São Paulo, mas nunca esteve em Goiás. Por que não? Porque tinha medo de encontrarem seu plágio. Volta e meia, em suas cartas, Monteiro Lobato fala sobre plágio, porque na sua consciência doía o fato de que ele nunca referenciou “Tropas e Boiadas ou citou Hugo de Carvalho Ramos”.

Monteiro Lobato: o escritor “plagiou” Hugo de Carvalho Ramos | Foto: Reprodução

Fui grande amigo do irmão mais velho de Hugo, o Victor de Carvalho Ramos, que me recebeu na Academia Goiana de Letras. Foi ele quem me informou sobre a relação editorial entre Monteiro Lobato e “Tropas e Boiadas”. Inclusive, os irmãos tinham esse nome porque o pai era apaixonado pelo escritor Victor Hugo. Há uma história de que Hugo viu sua mãe com um desembargador e isto pode tê-lo marcado. Porque ele adorava o pai.

Nilson Jaime — Mas a figura do Saci é mítica, já conhecida há séculos no Rio Grande do Sul.

Nenhum intelectual brasileiro colocou o Saci na literatura até o século XVIII. O Personagem só começa a aparecer no fim do século de 1800, difundido com a cultura do café. Mas falo do plágio por conta da forma como o saci é escrito nas obras. Em Hugo de Carvalho Ramos há uma representação do saci como um falo, há algo erótico. “Numa perna só, o saci é um lápis preto fazendo soneto de vento e cipó”, como digo no “Saciologia Goiana”.

Ademir Luiz — Considera Hugo de Carvalho Ramos um bom poeta?

Ele foi bom dentro do simbolismo da época.

Euler de França Belém — A prosa do Bernardo Élis foi inaugural, muito importante para Guimarães Rosa, como ele admitiu em suas cartas. Não é o momento de a obra do Bernardo Élis voltar a circular? A obra do Guimarães Rosa não “escondeu” as literaturas de base, como a de Bernardo Élis e de José Lins do Rego?

Toda ficção feita nesse período contribuiu para o problema da crítica. Ninguém no Rio de Janeiro conhece Bernardo Élis porque se publicou pouca crítica sobre ele. Duas seletas do Bernardo Élis foram feitas pela José Olympio e pela Editora Global, mas no Rio de Janeiro ele é conhecido apenas por escritores. Mas é um autor que merece ser lido e ser criticado. Sua obra é forte. Merece um papel melhor na literatura do país.

“Miguel Jorge tem talento e projeto literário” | Foto: Reprodução

Ademir Luiz — Como avalia a obra de Miguel Jorge?

Prefaciei “Avarmas”. Ele tem talento e um projeto literário. É um dos poucos em Goiás que têm uma concepção maior para seu trabalho. Mas ele quer ser poeta, contista, romancista e dramaturgo. Então ele não se especializa em nenhuma delas. Penso que deveria ir na direção do conto e do romance para não perder energia. Ele também tem uma preocupação com o universal. Ele não quer ser elogiado só aqui. Não se dá por satisfeito ao ser elogiado apenas aqui, ser resenhado aqui, ter prefácios escritos por escritores daqui. Isso é muito importante — um escritor tem que gastar dinheiro mandando seus livros para fora.

Euler de França Belém — Gabriel Nascente é um excelente poeta, mas também deveria se concentrar, porque parece que sua preocupação é produzir em grandes quantidades ao invés de depurar sua poesia. Apresenta altos e baixos. Tem poesias declamadas, outras muito elaboradas. O sr. não acha que ele precisava de uma edição de sua poesia?

Gabriel Nascente me visitou há poucos dias. Ele esteve no Rio de Janeiro para a posse do cantor e compositor Gilberto Gil na ABL. Eu já havia falado ao Gabriel, três anos atrás, que deveria fazer como eu fiz no meu livro “Aprendizagem”, publicado pela Prefeitura de Goiânia em 2014. Ou seja, deveria colocar todos os poemas que não foram publicados em um livro. Esse meu livro já foi analisado em uma tese de doutorado e duas dissertações de mestrado. Nada do que está lá entrou nos livros que eu lancei pelas editoras. Então nada é perdido. Mas o Gabriel Nascente acha que tudo que escreve deve receber atenção igual a todo o resto de seu trabalho. Isso não funciona porque o leitor se cansa, ele quer ler uma seleção.

“O poeta Gabriel Nascente acha que tudo que escreve deve receber atenção igual a todo o resto de seu trabalho” | Foto: Divulgação

Ademir Luiz — O sr. leu a poesia de Edival Lourenço?

Li. Trata-se de um bom poeta. Preciso conhecer mais sua prosa. Aos 90 anos, ainda espero ler muita coisa boa.

Italo Wolff — Há um grande poeta goiano subestimado?

Difícil dizer subestimado. José Décio Filho era bom poeta.

Jales Mendonça Guedes — O que acha da poesia de Félix de Bulhões?

Muito importante. Comparo um de seus poemas mais conhecidos, “Só”, com a poética de Castro Alves. Eles estiveram em São Paulo em 1870, onde podem ter se conhecido. Há uma imagem na obra de Castro Alves, da pessoa que vai morrer e está no alto da montanha olhando adiante e via atrás. O poema “Só”, escrito dez anos depois da morte de Castro Alves, tem essa mesma dicção. Castro Alves foi um poeta romântico que não acrescentou quase nada à tradição que já existia, mas escreveu muito bem.

Domingos Félix de Sousa: poeta, crítico literário e orientador cultural | Foto: Reprodução

Euler de França Belém — Domingos Félix de Sousa teve o papel de orientar os novos escritores, como fazia Ezra Pound. Como avalia sua crítica, orientação cultural e poesia?

O elogio porque, dentro do que que havia no Brasil no momento, Domingos Félix cumpriu o papel de orientação de sua geração. O prefácio do meu livro “A Poesia em Goiás” e minha biografia foram escritos por ele. Até o momento da morte, foi uma pessoa muito inteligente, tinha um arsenal de leitura muito grande e nós, que estávamos começando, não tínhamos. Ajudou muito o Antônio José de Moura e outros. Ele deixou um único livro, mas a crítica de Goiás não foi capaz de vê-lo. Eu tinha por ele admiração.

Nilson Jaime — Em sua obra, o senhor fala dos rios, da madeira, dos animais, dos ecossistemas. O lirismo rural vem da sua vivência infanto-juvenil?

Também. Eu morei em Brazabrantes dos 10 aos 14 anos, quando a cidade se chamava São João. O professor Marcos Carvalho Lopes escreveu que ali eu reinventei Goiás, pois não desprezei o Goiás antigo. Lavava roupa no Rio Meia Ponte, via as mulheres que chegavam de Anápolis se banharem no rio. Na loja do meu pai, tive muito contato com os baianos, e me lembro de pensar que o Rio Meia Ponte devia ser o Rio São Francisco, por ouvir que o São Francisco era muito grande. Tudo isso ficou em mim, e eu tentei transmitir de forma figurada.

Ademir Luiz — Como foi a mudança do nome da União Brasileira de Escritores (Ube), que ocorreu quando o senhor era presidente?

Mudou tudo, na verdade. Era Associação Brasileira de Escritores (ABDE), fundada pelos comunistas. Ninguém queria ser presidente. Eu aceitei, com Bernardo Élis como vice e Bariani Ortêncio como tesoureiro. Fizemos reuniões para criar o estatuto e mudar o nome. Compramos uma casa financiada pelo Banco Imobiliário. Bernardo Élis dizia que não valia a pena, que deveríamos alugar a casa, mas eu fiz questão de manter a casa. Ao mesmo tempo, eu era presidente do Instituto Histórico Geográfico de Goiás (IHGG).

Ademir Luiz — Então sua intenção com a mudança de nome foi romper com o passado comunista dos fundadores?

Sim. Não por serem comunistas, mas porque era uma esquerda que não fazia nada. José Décio Filho, que era um bom poeta mas que era louco, atrapalhou muito nesse momento. Ele correu atrás de mim com uma faca quando viu que eu estava mudando as coisas na então ABDE.

Gilberto Mendonça Teles: poeta, crítico literário e letrista de música | Foto: Euler de França Belém/Jornal Opção

Jales Mendonça Guedes — O que o senhor achou do atual IHGG, da parceria com o Sicoob UniCentro Br?

A coisa mais inteligente que se podia fazer pela cultura de Goiás era esta. Captar recursos para as instituições. Vi que é realmente uma coisa magnífica, reformar o instituto e escolher com cautela os sócios. O mesmo que falamos sobre a crítica de compadrio serve para os sócios também. Em Goiás é comum escolher os sócios pela amizade e não pelo critério da competência.

Nilson Jaime — O sr. é letrista de músicas. Tem parcerias de viola goiana com Fernando Perillo, Marcelo Barra.

Essa música com Marcelo Barra se chama “Para Goiandira e Cora”. Nós fizemos por telefone. Ele cantava a melodia e eu sugeria o verso.

Nilson Jaime — Então não era composição de poema, já tinha a concepção da música junto?

Em geral, era poesia e música misturadas. O maestro José Eduardo Morais musicou quatro ou cinco poemas meus. Ney Matgrosso musicou meu poema “Inspiração”.

Ademir Luiz — O senhor avalia que letra de música e poesia são a mesma coisa?

Só de ler, você sabe se há uma música que acompanha os versos. Mas o poema pode se sustentar sozinho e ser musicado, aí é duplamente feliz. Outras letras você não consegue ler sozinhas, porque sabe que falta algo nelas.

Ademir Luiz — A ABL tem incluído figuras da cultura popular. O que acha disso?

De 40 membros da ABL, cerca de 25 não são escritores — entraram por política ou amizade. Há mais de 15 anos não mando um livro para a Academia. Quem deveria estar lá dentro é quem contribui para a Literatura brasileira, quem produz.

Nilson Jaime — Bernardo Élis está sepultado no mausoléu da ABL. Existe solicitação da mulher dele, Carmelita Fleury, para trazer os restos mortais para Goiás, onde ele teria visibilidade maior. O que o senhor acha?

Do ponto de vista familiar é importante. Mas para a Literatura não faz diferença, não aumenta em nada o trabalho dele. O que importa é que ele volte a ser editado, as obras voltem a circular, o nome seja divulgado, as universidades analisem o trabalho dele.

Ademir Luiz — O sr. doou sua biblioteca para a UFG e também para a biblioteca de Bela Vista de Goiás. Como escolheu dividir seu acervo?

A Prefeitura de Bela Vista queria que a biblioteca tivesse meu nome, mas eu insisti que deveria ter o nome da minha mãe, que foi para Bela Vista com 14 anos de idade. Tem cerca de dez mil volumes muito bem escolhidos. Eu recebia muitos livros dos jornais para fazer crítica. Muitos livros bons, mas eu não tinha interesse em escrever artigos sobre muitos deles; então os enviei para a UFG quando completei 15 mil volumes. Eu moro há 50 anos no Rio de Janeiro, o lugar do Brasil que mais tem livros. Por que ia deixar meus livros lá? Então quis enviar meus livros para Goiás, mas cheguei a comentar com o reitor Edward Madureira [agora, ex-reitor] que não acreditava muito nas instituições para tomar conta do acervo; não desconfiava da UFG, mas desconfiava da UBE, do IHGG. Ontem vocês me mostraram que o IHGG mudou bastante, e hoje tenho a visão de que o instituto pode realmente contribuir para o futuro de Goiás.

Ruy Castro e o equívoco do modernismo carioca
Guillaume Apollinaire | Foto: Reprodução

Euler de França Belém — Estamos no ano de centenário da Semana de Arte Moderna de 1922. O crítico literário Luís Augusto Fischer, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, diz que a Semana paulista apagou outros modernismos pelo Brasil. O sr. concorda?

Essa ideia é originalmente do biógrafo Ruy Castro. Mas, antes de 1922, não havia explicitamente referências ao modernismo. Em 1916, na ABL, o grande poeta do parnasianismo Alberto de Oliveira dá posse a Goulart de Andrade, que em seu discurso disse que o modernismo já batia à porta. Mário de Andrade em 1917 publicou seu primeiro livro, “Há uma Gota de Sangue em Cada Poema”. Ali, já há características do modernismo, embora não seja um livro modernista. Em 1919 se começa a falar em futurismo. Em 1920 há “Um prefácio interessantíssimo”, que foi publicado no “Paulicéia Desvairada”. Em 1921, Graça Aranha trouxe a notícia de que um grupo de poetas parisienses vindos do dadaísmo realizariam o Congrès de Paris pour la défense de l’esprit moderne (Congresso de Paris pela defesa do espírito moderno), em março. Os paulistas quiseram se antecipar e fazer a Semana de Arte Moderna em fevereiro. Os franceses brigaram entre si e não fizeram o congresso. Ruy Castro ousou o impossível: retirar a glória de São Paulo, Estado onde o modernismo aconteceu claramente.

O francês Guillaume Apollinaire (1880-1918) publicou em 1918 o livro “Calligrammes”, composto por poemas visuais, escritos à mão. Ele logo foi baleado na cabeça e acabou morrendo de gripe espanhola, mas antes escreveu um testamento em que falava sobre o espírito moderno. Todos os poetas de vanguarda gostaram daquilo porque Guillaume Apollinaire combateu a guerra. Ele dizia que o espírito novo que se anunciava tinha de progredir aproveitando o melhor dos clássicos — uma ideia que Mário de Andrade prontamente aceitou. Na revista “L’esprit Nouveau”, disponível para consulta no museu Casa Mário de Andrade, você pode ver que Mário de Andrade teve acesso a essas ideias.

Antonio Candido: um dos mais importantes críticos brasileiros | Foto: Reprodução

Euler de França Belém — Quem é o crítico que vale a pena ser lido hoje?

Devemos ler todo mundo. Mas, para citar alguns, tem o Antonio Candido (1918-2017), que estudou a formação da literatura brasileira, começando no século XVIII. Ele sabia que não se podia entender a história da literatura sem voltar à formação sociológica e etnológica do povo. Ele analisou desde o barroco mineiro até 1865, com a publicação de “Iracema”, por José de Alencar. A partir daí, tem o José Guilherme Merquior (1941-1991), muitíssimo inteligente. Estudou até o século XX.  A crítica deles permanece viva, ativa, reverberante.

Ademir Luiz — No livro “Retórica do Silêncio” o sr. escreve que existem duas vanguardas, a “natural”, de experimentalismo, e a “provocada”, que busca destruir a tradição. As duas têm uso no Brasil e em Goiás?

A mais forte é a de experimentação. Por exemplo, para voltarmos ao Gabriel Nascente: ele é um poeta que podia se beneficiar de destruição ao invés da acumulação.

Italo Wolff — Seu livro “Poesia em Goiás” é um clássico incontornável.

Bernardo Élis, que era meu amigo, me disse: “Seu livro só não repercute mais porque você é goiano”. Por sinal, certa vez, encontrei o jornalista goiano Batista Custódio [editor do jornal “Diário da Manhã”], que me disse: ‘Por que você não me pôs no seu livro?’ Respondi: ‘Porque você não é poeta’. Ele insistiu: “Mas estou escrevendo um livro”. Redargui: “A crítica só examina aquilo que está publicado, que chegou ao conhecimento público”. (Risos)

Nilson Jaime — O sr. usa o Rio Araguaia como motivo para um livro de poesia.

Falo no poema sobre o Rio Araguaia — o novo e o Aragueio. Cito inclusive os grupinhos que não saltaram o Rio Meia Ponte. O Araguaia novo não quer ir para o Amazonas, por isso faz uma curva e vai desaguar no Oceano. Na sua trajetória passa pelo Rio Paranaíba, pelo Sertão. Ele vai cumprimentando e encontra Drummond: o menino novo de Goiás é saudado pelo menino velho de Itabira. Quando o Araguaia chega ao Rio São Francisco agradece ao rio pelo que faz pelo Nordeste. Surge o personagem Sereno, que acompanha o Araguaia.

Carmo Bernardes, escritor mineiro-goiano: “‘Jurubatuba’ não é um romance, e sim uma coletânea ou um costura de contos”| Foto: Álbum da família

Euler de França Belém — Como o sr. avalia a literatura de Carmo Bernardes, autor do romance “Jurubatuba”?

A primeira edição de “Jurubatuba” contém um prefácio meu. Ele insistiu e acabei fazendo. Eu estava indo para Portugal. Escrevi o seguinte: “Jurubatuba é mais um conto, uma série de contos, uma coletânea de contos que o autor costurou e fez um romance”. Escrevi isto.

Euler de França Belém — Como analisa a obra de Eli Brasiliense?

Ele escreveu “Rio Turuna” e “Chão Vermelho”. Não é um romancista tão grande.

Ademir Luiz — Como avalia as obra de Maria Helena Chein e Valdivino Braz?

Gosto da crítica e da poesia de Maria Helena Chein. Ela e Valdivino Braz escrevem muito bem. Têm valor.