As diversas formas de se contar uma história
21 maio 2016 às 10h34
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Em “A angústia da relevância”, a ficção é elevada a um exercício que põe à prova os limites do fazer literário
Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
“A angústia da relevância”, de Leandro Jardim, conta a história de um amor contemporâneo através de transições que abarcam da prosa poética à dramaturgia. O escritor e compositor carioca parte do conceito dissonante entre forma e conteúdo, para oferecer ao leitor uma experiência visual na qual a ficção é o veículo para se problematizar a liberdade do fazer literário.
O narrador que, logo na primeira frase esclarece que, “embora use a voz em primeira pessoa, nada daquilo aconteceu consigo”, é uma espécie de alter ego do autor que conhece, numa mesa de bar, um sujeito embriagado, cuspindo rimas, que lhe relata “a angústia de suas peripécias”. O papo se prolonga e, em dado momento, o novo amigo diz que vai até sua casa pegar as provas do que diz. Volta “cheio de papéis, poemas, prosinhas musicais e afins”. Sobre estes fragmentos que a trama se sustenta; no que trazem de realidade e de versões ficcionadas do real.
O sujeito se chama Joaquim; um poeta diletante que abusa dos estímulos etílicos como forma de inspiração. Gosta de circular pelo centro da cidade, pelas mesas dos bares e frequentar livrarias. Certo dia, numa galeria de informática, conhece Inês, uma blogueira de estilo ácido e melancólico, e engatam juntos um namoro, que mais funciona para estimular suas criatividades. Do gozo às dissidências, tudo vira material para literatura.
Desse modo, prosa e poesia se interpõem entre capítulos, entre parágrafos. O relacionamento vai se desenrolando não apenas por meio do discurso direto, mas na aparição de poemas que refletem a voltagem das circunstâncias. O narrador, onisciente, vale-se de notas de rodapé para situar o leitor sobre o sentido do que se passou e qual a importância daquele fragmento em versos para a história. Empreende-se, portanto, um exercício de metaficção.
Jardim edifica seu alicerce narrativo no movediço, na possibilidade descompassada de se estruturar um enredo, e o faz bem, sobretudo na escolha de contaminar um gênero com o outro. Em suas descrições incorrem o lirismo canhestro de seu protagonista, a maneira desbragada com que Inês percebe a vida e a deposita em suas postagens. Isso reforça a sensação de experiência, de que a história é, de fato, a construção da história.
Tal entendimento fica mais claro, próximo aos capítulos finais, quando a ficção se curva para um pequeno ensaio sobre a criação artística frente ao valor estético, na qual se busca referência na crônica “A muralha e os livros”, em que Jorge Luis Borges, citando o crítico inglês Walter Pater, coloca que “todas as artes aspiram à condição de música, que não é senão a forma”.
Talvez seja esta, de fato, a melhor descrição para “A angústia da relevância”, uma forma de música. Uma música estranha, mas definitivamente original, que embala suas páginas na audácia do autor.
Leandro Jardim é escritor de poesia, prosa e letra de canção. Publicou “Peomas” (2014) e o livro de contos “Rubores” (2012), ambos pela editora Oito e Meio, além de “Os poemas que não gostamos de nossos poetas preferidos” (Orpheu, 2010) e de “Todas as vozes cantam” (7Letras, 2008). Tem participações em antologias e, em parceria musical com Rafael Gryner, lançou os EP’s “O sonhador” (2014) e “Sementes musicais para um mundo cibernético” (2011).
Leia um trecho da obra “A Angústia da Relevância”, do carioca Leandro Jardim.
1
Peço, portanto, sua compreensão para o fato de que pouco mais tenho a oferecer do que alguma poesia encontrada durante os rompantes líricos aqui descritos, um pequeno número de histórias curiosas, e alguns esbravejamentos em forma de levianas teorias. Mas nada além de questionamentos de uma mente ativa e angustiada que por breves instantes aleatórios julga avistar ao longe o sublime dos paradoxos que se podem converter em arte. Isso e algumas outras frases estranhas, como essa.
2
Essa mania, essa mania de ser poeta! Ontem escrevi minha obra-prima, ao que parecia. Isso aí. Apenas um bom poema médio. Hoje todo poema bom é médio. O resto é uma merda, e a maioria. O poeta é hoje um morto-vivo, que segue rimando sem saber o motivo. Isso me lembra a minha obra-prima de três meses atrás, outro poema, dessa vez escrito para a namorada de um amigo meu, a Inês, por quem eu ridiculamente estava apaixonado. Eram palavras inspiradas — dado o tom dramático de tal situação — que se subvertiam com um final irônico. Até que foi uma boa ideia, embora nem tão original assim. Precisava ver a cara dela quando entreguei. “Agora é minha vez de mostrar um poema pra você”. Sim, ela também os escreve. A emoção da paixão correspondida seguida de um susto no final. (…) “O poeta é um fingidor, meu bem, eu inseri essa ironia pra dar uma graça, pra entreter o leitor de poesia”.
3
Após uma pausa reflexiva — que, lembrando agora, parece maior do que efetivamente foi — eu poderia ter dito ali para Inês que, excetuando-se o tom triste dos versos, ela até que havia acertado no poema. E florearia ao colori-la de elogios e comparações com Linces (a visão) e Clarices (a força da escrita). Isso, evidentemente, na parte que me diz respeito, já que o conteúdo nitidamente fala mais dela do que de mim. Mas não, essa verdade não era a minha. Se eu tivesse a intenção de ser realmente justo, a mínima parte da obra que me tangia deveria ganhar também uma pequena, mas significativa, ressalva: àquela altura dos acontecimentos eu já não era mais o mesmo, nem ela o era pra mim. Mas não, também. Tampouco era esse o meu intuito. Assim, sem saber o quanto aqueles versos ecoariam na minha cabeça, e ainda ecoam, preferi a ambiguidade do silêncio:
— Gostei!
4
Decidiu, por fim, num misto de dor, alívio e excitação, que seria essa, portanto, sua saída: suicidar-se pela escrita. Morrer era mesmo maior do que a vida. Um fim apoteótico que, por si só, já tornaria sua existência mais grandiosa do que fora somando-se todos os outros anos e dias e horas em que viveu. Percepção essa que provava a irrelevância de sua existência até ali, sofrimento que seria um prazer deixar pra trás. Olhou pela janela e se lembrou de quanto amava as palavras “crepúsculo” e “ocaso”, e o tanto que essa hora do dia a inspirava.
5
Sentia-se vítima de um transbordamento interno de proporções cataclísmicas e, embora houvesse muito de alegria ali, a intensidade era tamanha, que beirava o insuportável, o inaproveitável. Justificou com isso a convocação do álcool, como se, mais do que por vontade, por necessidade (futura e romanticamente, ao final de uma reflexão poética sobre o mesmo assunto, concluiria arbitrariamente que a linha divisória entre esses dois substantivos é tênue). Mas, ao abrir a geladeira não havia cerveja. Felizmente a decepção durou pouco, pois logo avistou ao fundo um vinho pela metade, a sobra de uma noite romântica armada ali alguns dias antes.