Substituta de David Cameron, a nova 1ª-ministra do Reino Unido tem agora a ingrata tarefa de lidar com o Brexit e todas as suas resistências

Como primeira-ministra, Theresa May tem a chance de provar a si mesma e mostrar como vai lidar com todas as resistências que o Brexit sofre nos territórios britânicos
O calendário britânico terá mais uma data para lembrar. Muitos súditos de Sua Majestade, a Rainha Elisabeth 2ª, estão tendo dificuldades em aceitar os resultados do plebiscito. Nos pubs, no trabalho, em conversas de rua, onde quer que estejamos, o Brexit continua em discussão. A quinta-feira, 23 de junho de 2016, entrará na história como o dia negro da Grã-Bretanha. A expressão é usual e já encontrou seu lugar na mídia, tanto escrita como falada.
Os dois grandes defensores do Brexit, Nigel Farage (que na Grã-Bretanha tem fama de radical), e o excêntrico Boris Johnson, ambos mancomunados com certos órgãos da mídia britânica, fugiram dos compromissos por eles alardeados durante a campanha. O historiador e politólogo alemão Heribert Münkel comenta: “A campanha do Brexit foi dirigida por pessoas que — segundo expressão usual da chanceler Ângela Merkel — não pensam sobre as coisas a começar do fim”. O povo, com razão, pergunta: “E agora?”.
Nos países republicanos democráticos, normalmente partimos do princípio de que o povo é o soberano (do latim “superanus”, isto é, aquilo que está acima de tudo; politicamente, o poder emana do povo). Não são raros os países que fixaram este conceito inclusive em sua constituição.
Este conceito curiosamente não se aplica à Grã-Bretanha. De fato, o povo britânico não é soberano, pois soberano unicamente é o rei, atualmente, portanto, a rainha Elisabeth 2ª. Na história da Grã-Bretanha só houve um curto período no qual o povo foi soberano. Em 1649, Oliver Cromwell proclamou a república e o povo tornou-se soberano mediante uma medida, na época não inusitada: decapitou o rei Carlos.
Seguiu-se um período de 41 anos de insegurança ao fim dos quais o Parlamento pediu ao filho do decapitado Carlos que voltasse a assumir o trono e reestabelecesse a monarquia. Prometeu-se, na época, que não mais haveria decapitações para todos os tempos. Isto foi no longínquo ano de 1600 e, desde aquela época, o povo britânico nunca mais voltou a obter a sua soberania.
Soberano, portanto, na Grã-Bretanha, é só o monarca que tradicionalmente também tem o título de “King of Parliament” (Rei do Parlamento), no caso, “Queen-in-Parliament”. A soberania política do reino é exercida pelo monarca e o Parlamento com duas câmaras, a alta e a baixa. Consequentemente, o primeiro-ministro britânico (chefe de governo), antes de ser o primeiro-ministro do povo britânico, é o ministro de Sua Majestade — tanto é que seu título oficial é “Her Majesty’s Prime Minister”, ou seja, “Primeiro-ministro de Sua Majestade”.
Entrementes, mais de 4 milhões de britânicos, dirigiram petição ao Parlamento Britânico, via internet, pedindo a anulação do plebiscíto. Milhares de pessoas vão às ruas em protesto contra o Brexit. É a campanha do “Exit of Brexit”.
Tradicionalmente, a monarca mantém-se neutra em assuntos políticos, mesmo que, em tese, ela possa recomendar ao Parlamento a anulação do Brexit. Na prática, uma recomendação neste sentido não seria viável, pois o plebiscito foi proposto pelo próprio Parlamento, encabeçado por David Cameron. Como explicar isso ao povo?
Em 2 de julho passado, a rainha Elisabeth 2ª, em visita a Edimburgo, em breve discurso por oportunidade da introdução do novo governo na Escócia, pronunciou uma frase que impressionou a muitos de seus súditos. Sem mencionar explicitamente a palavra Brexit, a soberana declarou: “Teremos que permanecer calmos e prevenidos. Justamente em tempos de desenvolvimentos rápidos, deveremos ter tempo suficiente para refletir e ponderar com calma”.
A soberana está ciente das tensões existentes e sabe que qualquer passo em falso poderia piorar a rachadura provocada, na sociedade britânica, por políticos populistas e alguns órgãos da mídia londrina. Foi a interpretação de muitos britânicos sobre as observações da rainha.
O relacionamento entre a União Europeia e seus países membros é regulado pelo Tratado de Lisboa, assinado em 13 de dezembro de 2007 pelos, na época, 27 chefes de governo dos Estados filiados e em vigor desde 1° de dezembro de 2009. Em seu Artigo 50, o Tratado de Lisboa trata da separação de um Estado da União via decisão parlamentar ou via plebiscitária, como foi o caso na Grã-Bretanha.
O Artigo 50 estipula um prazo de dois anos, com possibilidade de prorrogação, para acertar os detalhes da separação. Para início das gestões, é obrigatório o atendimento de um procedimento formal: a entrega de uma carta na qual o país que se separa solicita oficialmente a separação sem necessidade de mencionar motivos para o procedimento.
Vários líderes da União Europeia comunicaram que esperam receber a carta oficial o quanto antes. Passadas três semanas após o Dia Negro, a Grã-Bretanha ainda não apresentou o documento e Bruxelas não tem instrumento legal com o qual possa pressionar a Grã-Bretanha a atender a formalidade. O Artigo 50 não contém nenhuma cláusula que possa servir de instrumento de pressão. Além disso, Bruxelas deixou claro que não haverá início de gestões sem o cumprimento da formalidade.
A Grã-Bretanha decidiu separar-se da União Europeia, mas continuará sendo membro da Otan [Organização do Tratado do Atlântico Norte]. Afinal, a Grã-Bretanha, como potência nuclear, é um amparo imprescindível dentro desta organização de defesa.
Pendências
Muito se falou, escreveu e conjeturou sobre as consequências que o Brexit poderá causar à Grã-Bretanha, à Europa e ao resto do mundo. No entanto, há casos pendentes, até agora pouco ou nada comentados, que eventualmente poderão voltar à tona e transformar-se em tema de discussão. Convém mencioná-los de relance.
O governo da Espanha preocupa-se com os acontecimentos internos da Grã-Bretanha, sobretudo com um eventual desmembramento da Escócia e da Irlanda do Norte do Reino Unido. O governo em Madrid receia que tais desenvolvimentos possam dar mais alento aos próprios movimentos separatistas internos espanhóis, como no País Basco e na Catalunha.
Por outro lado, o governo espanhol vê nova oportunidade para resolver definitavemente uma antiga discussão com a Grã-Bretanha: Gibraltar, pequena enclave com 6,5 km² e uma população de 32.577 habitantes, desde 1704 sob soberania do Reino Unido. Segundo o tratado Paz de Utrecht de 1713, a Espanha abdicou de seus direitos territoriais desta nesga de terra, mas importante ponto estratégico comprovado durante a 2ª Guerra Mundial.
Há décadas, a população de Gibraltar, sobretudo após a Espanha ter se tornado membro da União Europeia em 1986, anseia por filiar-se à Espanha. A rainha Elisabeth 2ª é a soberana daquele minúsculo território e, por esta razão, os habitantes de Gibraltar participaram do plebiscito e o resultado foi claro: 64% dos eleitores votaram contra o Brexit, o que dá esperança ao governo de Madri para voltar a discutir o assunto.
Preocupações manifestaram-se também na África. Dos 56 países africanos, 18 fazem parte do Commonwealth e têm estreitas ligações políticas, econômicas e bancárias com a Grã-Bretanha. Patrick Njoroge, chefe do Banco Central do Quênia, lamenta: “Não dispomos de nenhuma estratégia e de nenhuma segurança que possa nos ajudar. Uma vez mais, foi tomada uma decisão, numa distante parte do mundo, cujas consequências atingirão 100 milhões de africanos”.
No Atlântico Sul existe outro foco de conflito inacabado. Na Casa Rosada, em Buenos Aires, estrategistas devem estar preparando novos planos para, no caso de um desmembramento do Reino Unido, voltar a tratar do caso “Islas Malvinas” (Os termos Ilhas de Falkland ou Falkland Ilands são deploráveis na Argentina. Ai do jornalista que, consciente ou inconscientemente, os usar!).
Entrementes, o Reino Unido está com novo chefe de governo. David Cameron, que desistiu mas quis permanecer no cargo até outubro próximo, viu-se confrontado com acontecimentos rápidos dentro do partido que culminaram com a antecipada escolha do candidato à sucessão; neste caso, uma candidata.
Theresa Mary May é a nova inquilina da Downing Street 10 desde 13 de julho. Ela, que tem ampla experiência política, sempre foi leal a Cameron, que a encarregou com o cargo de ministra do Interior, onde demonstrou invulgar capacidade de trabalho — com várias provas de que não receia conflitos. Cinco ministros do gabinete Cameron eram “brexistas”, isto é, a favor do Brexit. Theresa Mary May foi contra, mas respeita o resultado do plebiscito. Cabe a ela, agora, entregar a carta e dirigir as difíceis conversações com as entidades em Bruxelas.
Em curto depoimento, Theresa declarou: “Brexit é Brexit e transformaremos isto em sucesso”. Eis aí um trabalho hercúleo e parece que a nova inquilina da Downing Street 10, talvez uma segunda Margaret Thatcher, tem potencial para provar o impossível. Sobre si mesmo declarou: “Não sou política para grandes shows”. No Reino Unido, de momento, nada é certo e tudo poderá acontecer. Esperemos para ver no que dará.
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