Tratado de livre comércio entre UE e EUA divide opiniões e, se não sair rápido, pode não sair mais
Em fevereiro de 2013, Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, em discurso dirigido à nação falou, pela primeira vez, de um tratado de livre comércio entre a União Europeia (UE) e os Estados Unidos denominado Transatlantic Trade and Investment Partnership, posteriormente apenas chamado de TTIP, sua sigla em inglês; em português: Acordo de Parceria Transatlântica de Comércio e Investimento.
Na oportunidade, Obama deu luz verde para o início das negociações e, no dia seguinte, ele e o então presidente da Comissão Europeia, José Manuel Barroso, anunciaram oficialmente o projeto.
Os trabalhos preliminares, bem como as negociações subsequentes, foram realizadas com absoluta discrição, o que, desde o início, foi motivo de crítica. Passados três anos, o projeto já deveria estar na reta final e o caráter sigiloso das gestões transformou-se em tropeço como veremos no transcurso destas explanações.
Em junho de 2013, os 28 países da UE autorizaram a Comissão Europeia, através de um mandato, a iniciar gestões com os Estados Unidos em nome de seus países sobre o estabelecimento de um tratado de livre comércio entre as duas potências. O mandato incluía claras instruções sobre o que a Europa quer e, mais importante, o que a Europa não quer que faça parte do texto final do acordo.
O conteúdo do mandato, também secreto, causou desconfiança entre a população dos países europeus. Sob pressão pública, o governo dos países da UE viram-se impelidos a publicar o texto. Grupos de trabalho, 20 ao todo, com especialistas dos mais diversos ramos, deram continuidade aos trabalhos, sempre sigilosos, deste e do outro lado do Atlântico.
Segundo analistas, um tratado de livre comércio incrementaria substancialmente as relações comerciais entre a UE e os EUA, anularia barreiras alfandegárias, fomentaria desenvolvimento e, em consequência, criaria empregos. O poderio econômico dos EUA e da UE, com quase 900 milhões de consumidores, uma vez unido, seria um baluarte de defesa ante os crescentes desenvolvimentos no sudoeste asiático; uma medida estratégica de geopolítica econômica.
A ideia de um tratado de livre comércio entre os dois blocos não é nova. Desde os anos 60 houve várias tentativas para estabelecer um acordo de livre comércio entre a UE e os EUA. A ideia de um livre comércio mundial é até mais antiga. Data do século XIX quando representantes ingleses do liberalismo econômico clássico já a defendiam com o argumento de que o livre comércio contribuiria para o desenvolvimento e a riqueza das nações.
Em consequência desses desenvolvimentos foi criada, em 1994, a World Trade Organization (WTO), a Organização Mundial de Comércio (OMC), da qual atualmente fazem parte 161 países. A organização tem, entre outras, a finalidade de supervisionar e liberalizar o comércio internacional e é sucessora da GATT (General Agreement on Tariffs and Trade).
Na sede da OMC, em Genebra, Suíça, há registros de mais de 200 tratados de livre comércio ativos. O mais importante é o firmado entre a China e os países líderes do sudoeste asiático, a Asean (Associação de Nações do Sudeste Asiático), que abrange uma região econômica de 1,9 bilhão de habitantes, isto é, o dobro da população da UE e a dos EUA juntos.
A UE, que também é uma zona de livre comércio, considerando seu poderio econômico, situa-se em primeiro lugar do ranking mundial, seguido da zona de livre comércio norteamericana, a Nafta, entre os Estados Unidos, México e Canadá. A UE tem 30 tratados de livre comércio em vigor; o 31°, o Ceta, entre a UE e o Canadá, encontra-se em fase de ratificação. Em 2011, entrou em vigor um tratado de livre comércio entre a UE e a Coreia do Sul. Desde então, o comércio bilateral entre as duas partes aumentou em um terço.
Os Estados Unidos têm tratados de livre comércio com 20 países. O 21° seria o TTIP, caso este supere os obstáculos com os quais, de momento, se confronta. Paralelamente, os Estados Unidos intensificam seus interesses em direção à Ásia e ao Pacífico. Já em 2009, aquele país participou das negociações transpacíficas (TPP), cujo acordo, já concluído, encontra-se em fase de implantação. Fazem parte deste grupo, além dos Estados Unidos, a Austrália, Canadá, Chile, Japão, Malásia, México, Nova Zelândia, Peru, Cingapura, Vietnã e Brunei.
A China tem 12 tratados em vigor. Em preparo, encontram-se mais oito, entre os quais o Regional Comprehensive Economic Partnership (RCEP), do qual fazem parte os atuais países do Asean com a inclusão de Japão, Coreia do Sul, Índia, Austrália, Nova Zelândia e a própria China. Este bloco, caso se concretize, formaria um contrapeso ao TPP e representaria a metade da população mundial, um terço da força econômica mundial e 30% do comércio global.
O exposto demonstra que há substancial interesse na fusão de grupos ou regiões econômicas baseado em acordos de livre comércio entre nações em vários continentes. A pergunta que se põe é: por que a conclusão de um tratado semelhante entre UE e EUA encontra tantos obstáculos?
Há várias causas. Em primeiro lugar poderíamos mencionar o caráter secreto que envolveu as gestões desde o início. Fato é que nem os participantes dos vários grupos de trabalho inteiram-se do conjunto de temas abordados. Cada grupo é responsável apenas por um determinado tema ou área específica.
O espanhol Ignácio Garcia Bercero, chefe negociador da UE para o TTIP, comentou: “Os americanos sempre deixaram claro que esperam dos europeus o cumprimento do caráter secreto das negociações e dos documentos”.
Os 751 deputados do Parlamento Europeu e os governos dos 28 países da UE e alguns parlamentos nacionais têm acesso às informações numa sala especial, sob controle e sem uso de qualquer equipamento eletrônico e mediante a assinatura de um documento que proíbe qualquer divulgação. O material, segundo leitores que tiveram acesso, era insatisfatório, incompleto, até folhas avulsas sem nexo. Inicialmente, os americanos até exigiram que a leitura dos documentos só poderia ser permitida numa sala reservada de uma embaixada americana.
Gerou-se um clima de insatisfação e desconfiança o que contribuiu para repetidas demonstrações em várias capitais europeias, onde o povo foi às ruas para manisfestar sua contrariedade ante ao acordo.
A desconfiança não diminuiu nem quando, em princípios de maio passado, a ONG Greenpeace, num furo “wikileaksiano” divulgou, via internet, documentos sobre o andamento das gestões secretas. A divulgação causou impacto momentâneo amainado por representantes da cúpola em Bruxelas. Segundo aquela fonte, trata-se de simples documentos de trabalho, sem resultados e sem texto definitivo.
Mesmo assim os documentos divulgados pela Greenpeace revelaram perfeitamente os pontos de atrito e quão longe está a UE dos EUA para concretizar o acordo. Ficou claro que os EUA estão pressionando mais a UE do que até agora era conhecido o do que apenas se supunha.
Jürgen Knirsch, especialista em assuntos de comércio internacional da Greenpeace, dá asas a sua preocupação: “Tudo que sabíamos dessas reuniões secretas, parecia um pesadelo. Com a publicação dos documentos da Greenpeace, sabemos agora que tudo isso, em breve, poderá tornar-se realidade”.
As diferenças são grandes e há pontos cruciais que não poderão encontrar concordância em curto prazo. Direito laboral, um tema inviolável na UE; o setor agrícola e a indústria alimentícia receiam a americanização da Europa com produtos transgênicos; proteção de investimentos, licitações públicas e, em especial, a jurisprudência. O lado americano exige que assuntos contenciosos deverão ser resolvidas por juristas americanos em território americano. A UE opta por uma instituição paritária com juristas europeus e americanos, uma espécie de corte de justiça anglo-americana, a ser criada especificamente para resolver futuras contendas resultantes do acordo. São estes alguns dos exemplos que não poderão ser resolvidos em poucas semanas.
O presidente Obama tem grande interesse em assinar o acordo ainda durante sua permanência na Casa Branca. Em 8 de novembro próximo haverá eleições nos Estados Unidos e ninguém sabe como reagirá o novo governo ante um acordo elaborado pelo governo anterior. Donald Trump já deixou claro que não tem nenhum interesse no TTIP e Hillary Clinton, até agora, também não tem demonstrado grande interesse em relação ao assunto.
Em janeiro de 2017, quando o novo governo assumir em Washington, a Alemanha e a França estarão em plena campanha eleitoral. François Hollande, presidente da França, também já deixou claro: “O acordo, nos termos atuais, não será ratificado pela França”. Ângela Merkel, chanceler da Alemanha, contraria: “A Europa terá que acelerar o passo diante das alianças de livre comércio em planejamento na região do Pacífico.” Joseph Stiglitz, Nobel de Economia, é mais enfático: “O TTIP é supérfluo e perigoso”.
O argumento de Stiglitz para alguns poderá parecer exagerado; para outros, poderá ser uma confirmação dos receios europeus. Em todo o caso, o assunto é complicado. A Europa tem muito a dar; mas também tem muito a perder.
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